Durante semanas Aníbal tratou-a com todo o esmero e cuidado seguindo à linha as instruções publicadas no guia do apicultor, mas a galinha, bem instalada na sua gaiola vermelha pendurada na varanda, teimava em não cantar. Já a galinha da D. Rosa do 9º A cantava muito bem mesmo sem saber ler. E era gorda e punha ovos escalfados logo de manhãzinha, antes de vir o leiteiro. Foi por isso que tudo começou, como uma bolachinha de inveja quente e estaladiça, apetitosa. A inveja rói-se enquanto dura mas depois faz a pessoa roer-se e Aníbal, coitado, viu-se de repente atacado de pensamentos perversos: “A galinha da vizinha tem mais penas do que a minha; a galinha da vizinha canta melhor do que a minha; a vizinha da galinha tem uma televisão melhor do que a minha; a gaiola da vizinha tem uma galinha maior do que a minha; a vizinha da galinha na sua gaiolinha é… a galinha… a vizinha…” e por aí adiante, coitado. Não admira pois que o pobre Aníbal se começasse a roer. Como qualquer um, aliás. De início roeu só as unhas, mas as unhas depressa se acabaram e um dia teve que roer um dedo. Roeu o mindinho esquerdo e não lhe soube mal de todo, embora fosse um bocado adocicado. Nessa noite comeu três malaguetas e o indicador soube-lhe muito melhor. Um a um, Aníbal roeu todos os dedos, depois a mão, depois os outros dedos e a outra mão e um braço e outro braço. Foi mais difícil roer as pernas porque tinha que se dobrar muito, o que lhe causava dores nas costas. Mas roeu as costas e o problema passou. Roeu-se todinho a pouco e pouco, com entusiasmo e dedicação, até que lhe ficaram só os olhos e os dentes. Também roeu a vizinha, mas foi a Dª Alice do 6º C. Um dia, era Aníbal já só olhinhos e dentes, sentou-se calmamente na varanda a tomar banho de sol. Em má hora o fez porque a galinha, que era míope, confundiu os olhinhos com grãos de milho e comeu-os um a um até ficar de papo cheio. Depois cantou. Muito melhor que a galinha da vizinha. Aníbal ferrou-lhe os dentes.
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