02 dezembro 2005

Pedras do Caminho

Lá à frente a escuridão palpável barrava o caminho e não havia galho de árvore que mexesse, não havia pio de ave ou arfar de bicho que atestassem vida. Era o breu profundo que imperava como uma metáfora de morte próxima a encharcar os ossos já cansados do viajante que, para chegar ao seu destino, teria que cruzar aquela parte da floresta.
Pousou o saco com comida suficiente para essa noite e um cobertor outrora quente a seus pés e olhou em volta, tentando avaliar o caminho. Sabia, de relatos que lhe tinham chegado aos ouvidos em tabernas e hospitais do caminho, que muitos dos viandantes que ousavam o caminho da floresta não foram mais vistos, pelo menos na sua forma original pois, segundo alguns contavam, eram feitos cativos do emaranhado de silvas e arvoredo sob a forme de pedras incógnitas que nem um traço de pessoa conservavam e que, em noites escuras, soltavam lamentos sob a forma de uivos terríveis, tão terríveis que quem os ouvisse poderia focar louco com tamanho desespero.
Ficou ali por um momento até decidir avançar. Não tinha muito a perder. Tinha nada e nada era mais ou menos a sua vida. De posses, para além do bornal que transportava, tinha apenas um relógio que pertencera aos varões da família que não deveria deixar a ninguém pois a sua idade, já alguma, não era a própria de quem quer constituir família.
Amigos não tinha e paixões muito menos. Era mais como um Judeu Errante que andava por aí até que a Senhora o levasse, se algum dia o levasse, que até agora essa Irmã Morte não lhe tinha ainda dado sinais de vida.
Penetrou na vegetação, avançando a custo por entre silvas e altos arbustos, tropeçando ocasionalmente numa ou outra raiz centenária que lhe dava sinal de existência, acautelando a marcha, olhando sempre em volta. Nada. Nem vivalma, nem sinal algum, ruído, apenas o dos seus passos na folhagem. Lá à frente, uma clareira. Uma fonte iluminada pelo luar raro estava mesmo ali ao centro, elevada num patamar de mármore jorrando o que lhe parecia ser água. Aproximou-se tirando o cantil que levava a tiracolo e, lá chegado, tratou de o encher.
Sentado e com o cobertor pelos ombros, tirou alguma comida, queijo e pão já duro de alguns dias, que mastigou com calma, lentamente a tomar-lhe o gosto, e bebeu. Não era água, ou pelo menos seria uma água bastante especial pois o seu sabor estava para ali entre o mel e o mais saboroso dos vinhos e, embora incolor e inodoro era completamente satisfatório. Bebeu mais um pouco, mais um pouco e sempre mais um pouco até que, embalado já por estranhos cânticos e luzes que lhe dançavam o espírito, se deixou adormecer.
Sonhou. Muito. Castelos, lindas mulheres de vestidos debruados a ouro em decotes lascivos, taças em ouro e diamantes cheias dos mais preciosos néctares, crianças que o rodeavam e lhe prestavam atenções desconhecidas, a lareira crepitante, a comida na mesa, tudo em surround e a cores, cheiros e sabores incluídos, um piano que tocava qualquer coisa de Chopin (claro…) e, lá fora, árvores de natal a delimitar os caminhos.
Era festa em qualquer um outro tempo que ele não conhecia. Uma mistura de passado/presente/futuro que não sabia como distinguir mas que lhe agradava. O conforto, finalmente, talvez até o amor, pela forma como aquela mulher o olhava.
O sonho, porém, continuava sempre, com imagens sobre imagens, com cheiros, sabores, em cima de cheiros e sabores, com a felicidade a sobrepor-se à felicidade até chegar a um ritmo impossível de aguentar. Ninguém conseguiria, jamais, ser feliz assim.
Tentou acordar, em vão. Não conseguia.
Reparou, estarrecido, que iria ser incomensuravelmente feliz por toda a eternidade. Talvez o tivesse desejado intimamente, explicou-lhe uma voz que não conseguiu definir, tal como todos os que por ali andavam há anos, há séculos.
Ele disse: mas eu não quero ser feliz. Eu vivo bem na minha miséria diária, no meu caminho molhado de todos os dias. Eu não quero mais nada senão ter as minhas botas rotas e andar, sempre.
Estás enganado, disse-lhe a voz. Bebeste da Fonte do Desejo, é este o líquido mágico que te dá os teus desejos e só existe uma forma de te libertares do sonho: deverás renunciar a tudo o que acreditas ser, deverás negar a tua própria existência, deverás deixar de caminhar solos molhados pela chuva e entregares-te ao esquecimento de ti próprio – ser como o tolo da aldeia que ri desalmado por entre a falta de dentes e o olhar exorbitado às pessoas que saem da igreja, ser como a mulher que pariu o nado morto e não sente absolutamente nada com isso, ser como o general que envia os seus milhares de mancebos para a morte com o risco estatisticamente analisado, ser como o padre que parte o corpo de deus em dois e o molha no vinho sem se aperceber do sabor que ofereça em comunhão, ser como o ministro que condena à morte sem um pestanejo.
Ele olhou pela primeira vez para dentro de si próprio, nunca se tinha visto. Viu uma luz que tremeluzia e que sabia ir apagar-se se deixasse o sonho. Nunca conseguiria ser assim. Infeliz, talvez – indiferente, nunca.
Deixou-se ficar.

Ali, na floresta, em noites escuras, existe agora uma pedra que grita o sofrimento angustiante de ser feliz eternamente.

6 Comments:

At 02 dezembro, 2005 14:47, Blogger isabel mendes ferreira said...

a floresta abre-se para aceder às pedras.o caminho nem sempre é de luz mas se a tal felicidade é um bem extático o que fazer depois dela? um texto interrogativo para ser contemplado. boa tarde.

 
At 02 dezembro, 2005 21:42, Blogger Lia C said...

Angustiante e belo, o teu conto. Lindíssimo. (Fiquei sem respiração!)

Beijos muitos

 
At 02 dezembro, 2005 23:42, Blogger Alberto Oliveira said...

Quem conta um conto... assim, pode e deve contar muitos mais. Para prazer do navegante atento e obrigado.
Boa!

 
At 03 dezembro, 2005 02:39, Blogger iNuno said...

mestre!
(falta aqui um sapinho de adoração)

viandante é fenomenal...

arrepiaste-me!

 
At 05 dezembro, 2005 16:38, Blogger isabel mendes ferreira said...

hum hum....(isto é o comentário aos seus comentários:)) e bjos.

 
At 05 dezembro, 2005 23:19, Blogger Almerinda said...

Cheio de "tudo" e de...poesia tanta!
Que belo!

 

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