09 janeiro 2006

A verdadeira história da pastorinha e do limpa chaminés - continuação

Mal acabou de contar a sua história, o lobo mau começou a chorar e foi-se embora muito envergonhado. O limpa chaminés ainda lhe quis dar dez tostões mas o lobo mau nem isso aceitou, vejam lá. De qualquer forma o limpa chaminés atirou fora os dez tostões, que logo por acidente foram cair dentro de casa da carochinha. São estas ligações que dão sentido à história da humanidade. O limpa chaminés continuou o seu caminho. Como não tinha grande coisa para fazer resolveu ir dar uma volta pelos arredores da cidade. Andou, andou, andou, até que viu um castelo. “olha um castelo” disse o limpa chaminés e bateu à porta truz truz. Acho que já disse que não sei porque é que não era o carteiro ou porque é que o limpa-chaminés tocou duas vezes, mas foi assim mesmo que aconteceu outra vez. Quem é? perguntou uma voz lá de dentro. Sou o limpa chaminés disse o limpa chaminés. Oh! Mas este castelo não tem chaminé disse a voz lá de dentro. Que pena disse o limpa chaminés e já ia para se ir embora quando a pastorinha (era ela que estava lá dentro) disse Mas podes entrar porque eu estou muito triste e muito sozinha. O limpa chaminés entrou e mal viu a pastorinha apaixonou-se por ela logo ali. Por sua vez a pastorinha mal viu o limpa chaminés apaixonou-se por ele logo ali. Exactamente como o lobo mau dizia que os franceses dizem: um coup de quelque chose. A pastorinha e o limpa chaminés casaram e foram muito felizes e tiveram muitos filhinhos. Segue-se :

05 janeiro 2006

A verdadeira história da bela adormecida

Há muitos muitos anos atrás era eu um jovem príncipe belo e feliz que vivia no meu castelo com os meus pais e os meus imensos irmãozinhos. Os meus pais e os meus imensos irmãozinhos têm também uma história muito bonita, mas agora não posso contar. Um dia andava eu a passear no meu cavalo branco quando cheguei a uma floresta e vi uma menina a dormir. Era uma menina muito muito muito bonita, tão bonita que me apaixonei por ela logo ali. Não sei se sabes como estas coisas são, mas às vezes acontecem. É o que os franceses chamam coup d’ oeil, não, coup de foudre, não, olha não sei, mas às vezes acontece. Bem, apaixonei-me por ela logo ali e dei-lhe um beijo na testa porque ainda não tínhamos assim muita intimidade. Ela acordou e perguntou “quem és tu?” e eu disse “sou o polegarzinho e tu?” e ela disse “eu sou a bela adormecida” e continuou a dizer “és muito bonito polegarzinho”. Como vês, apaixonou-se também por mim logo ali, e nessa altura demos um beijo a sério. Ficámos muito felizes e casámos. Quando já tínhamos três filhinhos resolvemos ir visitar os meus pais e os meus imensos irmãozinhos para eles conhecerem os netinhos. Íamos a caminho quando nos apareceu uma cegonha com uma garrafa de gargalo alto cheia de vinho. A cegonha disse “onde ides ilustres cavaleiros sob um sol tão escaldante?”. Não, desculpa limpa chaminés, mas isto foi numa outra história. A cegonha disse “olá jovem príncipe e bela princesa com três filhinhos. Onde é que vão com tanta pressa e tanta alegria?”. E nós dissemos “vamos visitar o resto da nossa família que mora em casa da avozinha”. E a cegonha disse “então lanchem comigo antes de seguirem caminho. Ela parecia tão simpática que nós aceitamos a oferta e lanchámos com a cegonha. Parece que ainda estou a ver: broinhas de mel e pinhões e o vinho a acompanhar. Mal acabámos de lanchar pim! caiu sobre nós a maldição da cegonha. Eu transformei-me em lobo mau a bela adormecida transformou-se em raposa e os nossos três filhinhos ficaram transformados em porquinhos. A cegonha por sua vez transformou-se naquele menino irritante que passa a vida a gozar com a minha maldição. Chama-se pedro.

03 janeiro 2006

E depois havia outra Joana.
Mas esta nem sequer chegou a crescer. O seu corpo desapareceu às mãos de quem a deveria ter protegido... por um punhado de euros.

JOANA
de ti apenas resta tudo o que não foi dito...
e as palavras inexistentes
sussurram como filigranas de uma música que me escapa por entre os dedos
(uma gargalhada no recreio,
uma canção de embalar)
e olho para o lago mais profundo que os teus olhos onde repousas
contando as flores que flutuam
as mesmas flores de ofélia
as mesmas flores que sempre acompanham a morte de perto
a tua imagem surge uma vez mais no ecran da tv
e sinto a vertigem de me atirar às águas numa justiça de mortal
numa justiça vã

reconheço-te nos milhões de miseráveis que não conheço ou finjo não conhecer
nas esquinas
nas entradas de centros comerciais
a chorar bebedeiras de pais em casas ao lado da minha
reconheço-te no silêncio cobarde a que me remeto
de cada vez que enfiado em mim digo
não é nada comigo

não te conheço

Não é verdade que Joana tenha sido sempre assim.
Foi, em tempos, uma miúda como qualquer outra, se bem me lembro dela.
Tinha a mania das tranças e nós brincavamos com isso correndo pelos corredores da Industrial atrás delas. Era bonito de ver a Joana nessas alturas, esvoaçante vida fora, saca a tiracolo a dar-a-dar e de sorriso afogueado de cada vez que, arfante, era apanhada por um de nós. Era então engraçado ver os seus olhos acastanhados e luzidios rirem por entre sardas e as covinhas que fazia nas bochechas.
Deixei de a ver durante anos e anos para ontem a apanhar ali à beira do Convés. Andrajosa, fala entaramelada, a arrumar uns carritos. Pelo que me dizem, à noite ainda "faz" uns gajos. "Essa foi sempre uma malucona...", dizem. Mas eu sei que não.
Houve uma época em que, nestas bandas de Matosinhos, a moda era a "base". Ao que parece, Joana não conseguiu sair da moda e agora passeia os seus ganhos entre a falta de dentes e as pupilas sem vida.
Era bonita, a Joana.
Falei-lhe. "Então, Joana? Como tens andado?" Ficou ali, a olhar para mim, meio sorriso parvo na cara, apesar de tudo ainda bonita, até responder "Qualquer coisinha Xôr Doutor... deixe ficar o carro à vontade que comigo aqui não se passa nada...".
Não haviam tranças, não havia saca a tiracolo, não havia saia plissada, não havia Joana dentro daquelas órbitas desligadas.
Dei-lhe 1 euro e entrei para almoçar.
À saída já não vi a Joana no estacionamento. Quem lá estava era o Paulo.
Um destes dias falo-vos do Paulo.