Do crime
Adão Cordeiro era um pedinte de sucesso. Em poucos anos tinha amealhado um razoável pé de meia só com três horas de trabalho diário. Trabalhava também ao fim de semana, mas preferia ocupar três horas de sábado e outras tantas de domingo do que dividir essas seis horas pelos cinco dias úteis da semana. Não daria certo, sobrava sempre uma hora que não sabia onde pôr. Tirando esse pequeno senão, não se arrependia de ter posto de lado a sua promissora carreira de engenheiro informático, que lhe dava muito mais trabalho por pouco mais dinheiro. Nem se preocupava com as roupas sujas e rotas que era obrigado a vestir três horas por dia, sete dias por semana. Usava sempre o mesmo fato, e era esse que vestia no dia anterior, quando se preparava para sair e entrou a polícia a disparar perguntas, as tais perguntas sem resposta que o levaram até ali. Não se lembrava de nada e era isso que tinha dito vezes sem conta ao inspector que o interrogara, mas o outro não se dera por convencido e prendera-o. Agora, sozinho na cela, tinha justamente acabado de fechar os olhos para se concentrar em mais um esforço de memória quando a porta se abriu. O homem apresentou-se sumariamente por um cartão de visita com o canto superior direito devida e meticulosamente dobrado: “Dr. Alexandre Bitola, Advogado”. Interiormente persuadido de que também sumariamente, este último começou a relatar o caso. Alto, corpulento, bem vestido e apoiado numa bengala de cabo de prata, falava numa voz um tanto aguda, que destoava por completo da figura imponente que aparentava nos raros momentos em que se calava para respirar. Que tinha sabido do caso porque um amigo da polícia o tinha informado. Um caso curioso, que lhe agradou pelos pormenores macabros e o ar sádico com que o amigo o pintou. Um caso curioso e difícil, para o qual vinha oferecer os seus préstimos como advogado. Tinha já começado a inteirar-se do processo, mesmo sem prévia autorização e acordo do acusado - facto, aliás, pelo qual pedia imensa desculpa - por mera curiosidade e desafio intelectual. Sabia que a denúncia tinha sido feita pelo vizinho do rés do chão, um respeitável merceeiro à beira da falência, que se tinha aprestado a apresentar várias evidências à polícia, entre as quais figuravam uma factura de electricidade por pagar e um bilhete de comboio de uma viagem feita há 2 anos. Sabia também que quando a polícia lhe tinha invadido a casa com pós, flashes, as inevitáveis algemas e outros recursos abundantemente descritos na literatura do género, o corpo do crime, já putrefacto, continuava conforme o tinha deixado há três dias, em cima da mesa, sem pele, com uma faca espetada. A pele tinha sido encontrada no caixote do lixo a abarrotar, por baixo do lava-loiças, juntamente com uma lata de atum de conserva vazia, uma meia meia desfeita, oitenta e duas beatas de cigarros fumados até ao filtro, uma lâmina de barbear ensanguentada, um impresso do totoloto, duas saquetas de chá de camomila, trinta e sete ossos raspados (dos quais, após detalhada análise laboratorial, dezanove se vieram a revelar ser de frango e os restantes de porco), um CD irrecuperavelmente partido, cento e trinta e quatro gramas de restos de feijão manteiga guisado, etc, etc. O crime, já de si chocante, afigurava-se portanto particularmente hediondo e repugante.
Chegado a este ponto o advogado retirou do bolso uma fotografia a cores e abanou-a junto ao nariz do acusado, que distinguiu claramente um leve cheiro a naftalina. Depois aclarou a voz, tornando-a ainda mais aguda: - Sem querer fazer julgamentos morais, que de forma alguma são da minha competência, parece-me terrivelmente significativo e indicativo da sua falta de carácter a total ausência de respeito que demonstrou pela vítima… Caramba, homem!… ao menos tratasse-lhe da morte com dignidade! É insuportável pensar que conviveu com isto durante três dias sem se sentir minimamente incomodado. É… é monstruoso! Diga a verdade: porque é que a matou?
- Se bem que a verdade me seja uma coisa estranha - começou por dizer Adão Cordeiro - a verdade é que penso que não fui eu quem a matou. Nem sequer tinha motivo - disse esperançado na boa fé do advogado a retorcer as pontas do pequeno bigode louro e ralo. - Nem vejo que o pudesse ter… Que motivo podia eu ter?
O Dr. Alexandre Bitola, que se envergonhava do nome, anuiu com um aceno de cabeça, ar grave e pensativo: - Sim… também não sei que motivo podia ter… Mas a tal verdade que lhe é uma coisa estranha é que ela está morta e bem morta. Repare que não respira, não se notam batimentos cardíacos nem há qualquer sinal vital… sim, está morta e bem morta. E sem pele!
Adão Cordeiro confirmou os factos por pura observação ocular da fotografia a cores que o outro lhe mostrava. Ela estava morta. Não respirava, não se notavam batimentos cardíacos, nem havia qualquer sinal vital…Morta e bem morta e sem pele. Olhou para o advogado num mudo pedido de ajuda. O Dr. Alexandre, porém, prosseguiu como se nada tivesse notado: - E há a faca, claro… foi tolice deixar-lhe a faca espetada. É uma prova indiscutível que aponta claramente a sua participação no acto… a sua culpa, no fundo… é à faca que a acusação se vai prender. À faca e à pele, claro.
Foi-se toda a força defensiva de Adão Cordeiro. - Quanto leva para me representar em julgamento? - perguntou num múrmurio a enfiar-se ainda mais pelo casaco axadrezado sujo e de mau corte.
O Dr. Alexandre Bitola não precisou pensar muito: - Quinhentos contos de honorários, mais coisa ou menos, e despesas de representação. Preciso de um fato novo, uns sapatos, e uma nova gravata. E uma pasta de pele e um pacote de rebuçados de mentol por causa do mau hálito. Não que eu tenha mau hálito, mas tenho que causar boa impressão ao juiz… Digamos… mil e quinhentos contos, no total. O seu caso é extraordinariamente difícil…
- De momento não disponho de tanto dinheiro - lamentou-se Adão Cordeiro lembrando-se que os certificados de aforro só venciam daí a dois meses - Posso pagar-lhe as despesas de representação em géneros?
Embora com certo desagrado, o advogado acabou por aceitar a proposta, posto o que firmaram o acordo com um aperto de mão como se fossem amigos.
- Então até depois - disse o Dr. Alexandre Bitola a dirigir-se para a porta. - Tenho ainda muito trabalho pela frente. De repente voltou atrás e estendeu ao outro o pequeno retângulo de papel brilhante e colorido: - Pode ficar com isto.
Adão Cordeiro pegou com relutância na fotografia e um novo arrepio de horror percorreu-o ao rever a imagem do crime que lhe imputavam. Não havia por onde fugir: lá estava ela em cima da sua mesa, morta, sem pele, com uma faca espetada. Com espanto, deu consigo a pensar que quem quer que o tivesse feito tinha feito bem, porque a pele dela era enrugada e já sem vida mesmo antes de lha tirarem… Lembrava-se ainda de como era quando a trouxera para casa, sã, a pele lisinha e suave sem uma única mancha. Tinha-a trazido por puro capricho, só porque ela era linda e ele gostava de ter coisas lindas. Mas em raros momentos sentira prazer em olhar para ela e, tal como outras coisas na vida que se entretinham a contrariá-lo, em pouco tempo ela tinha deixado de ser como era. Depressa perdera o aspecto são e a pele, antes tão lisinha e suave, tinha-se enchido de manchas e rugas. A pele… Sentiu náuseas… Pouco a pouco foi recordando como nesse dia chegara a casa exausto e cheio de fome depois de uma manhã particularmente difícil e pouco rentável; como sem sequer lavar as mãos almoçara em silêncio, olhando-a de quando em vez, com um sentimento íntimo de repulsa por ela e pela presença dela ali, a desafiá-lo só por existir e lhe lembrar que havia muitas outras iguais a ela. Demorara a engolir a última garfada do esparguete demasiado cosido, como se engoli-la tornasse inevitável fazer o que sabia já ter decidido. E fez, sabia agora…pegara na faca e, sem aviso, começara a tirar-lhe a odiosa pele com uma fúria crescente de nojo… depois, cego de raiva, espetara-lhe a faca e ali mesmo a largara, em cima da mesa, para correr à casa de banho e vomitar todo o almoço sem sobremesa… Sim, fora ele… Desde miúdo que detestava maçãs.
4 Comments:
Uma grande história de suspense! Imagina que atá já tava a pensar que a vítima era a galinha! Mas uma maçã?!!! Nunca pensei! É caso pra dizer que essa morreu duas vezes!
Esta narrativa expressa uma perspectiva do mundo contemporâneo em que a vida quotidiana se torna supérflua, quando limitada pelas normas sociais que reprimem os impulsos do ser humano. Nesse contexto se insere o seu apelo implícito à liberdade dos actos e das palavras.
Lia! Lia! Lia! Lia!
clap clap clap clap
Como vês, este contonto digno de um enredo para o Nero Wolfe, já originou um upgrade na tua claque.
Uma galinha, Lálé? Mas a que propósito, mulher??? Não se via logo que era uma maçã??? Tudo ali explicadinho, como diz muito bem o Macaco Adriano acerca desta narrativa (foi uma bela análise, Macaco... gostei particularmente da parte em que a vida quotidiana se torna supérfula - porque sempre nos dá a esperança de que alguma vez venha a ser necessária... ou tenha sido, não sei... depois do natal penso no assunto).
Jigoku, este contonto merecia mesmo um upgrade... foi a coisa maior que escrevi, acho eu (sem contar com os trabalhos, claro...).
Beijos muitos para todos
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