09 dezembro 2005

Vida?

Ao peso da vida já ela andava habituada e, não fossem as meia dúzia de tostões estrangeiros que lhe chegavam de mesada, as coisas seriam ainda piores.
A fábrica de confecções estava a fechar, os putos na escola e ela a tentar fazer render o tempo, a parca mesada e as virtudes.
A noite chegada e lá ia Glória andar mais um bocado, não para derreter gorduras como agora se faz, mas para as fazer leite e pão para os seus miúdos.
Era assim todas as noites, salvo aquelas em que, por obrigação da Natureza era obrigada a um curto período de descanso ou nas alturas em que Custódio vinha a casa.
Custódio nunca poderia saber de nada. Era ponto assente.
Ele não poderia sequer imaginar destas suas actividades, horas extras de trabalho. Custódio andaria ainda convencido que o seu trabalho lá por fora, vivendo num contentor e afogando a saudade em bagaços, era realmente suficiente para as duas bocas que não cessavam de pedir, para os livros da escola, para a casa que tinha começado a construir com as suas próprias mãos e que ostentava agora uma placa de betão de ferros apontados ao céu, como que a rasgá-los – como por vezes Glória se sentia, rasgada por dentro.
Era para fora que ela ia, para as bandas da Serra.
Foi por aí que conheceu o Sr. Matos, cliente habitual que, após alguns encontros no meio do pinhal, resolveu apaixonar-se por ela e tentar tirá-la da vida. Começou com prendas que ela guardava num terreno, enterradas, não fosse Custódio alguma vez indagá-la acerca do assunto, mas rapidamente a coisa tomou outras proporções: das prendas passou às “perseguições”, das perseguições chegou ao cúmulo de a esperar à porta de casa.
A vizinhança desconfiava mas permanecia calada.
Um dia, chegada à Serra, entrou na mata para pousar as suas coisas e deu um grito de terror. O Sr. Matos jazia no meio das silvas com a cabeça aberta e a mioleira espalhada pelo chão.
Fugiu com a rapidez que as suas pernas, já desfeiteadas, lhe permitiam.
Correu, correu muito até chegar a casa, esbaforida. Ao abrir a porta, o seu filho mais novo veio a correr ao seu encontro, saltando-lhe ao colo e gritando de alegria: “Mãe!, Mãe!, o Pai está em casa! Veio de surpresa!”.
Glória ficou estarrecida e, recompondo-se, olhou o marido nos olhos e, sinceramente, abraçou-se a ele, beijando-o entre lágrimas.
“Fizeste boa viagem?”, perguntou ela.
“Estás cansada?”, perguntou ele. “Não devias trabalhar tanto”, acrescentou. “Não tens necessidade”.
Afastou-se.
Glória sentiu um calafrio e ficou a pensar que algo tinha mudado na sua vida e na de Custódio.
Custódio nunca mais lhe tocou durante o resto das suas vidas.

Ao fundo do quintal, entre a sucata que por lá andava, havia uma sachola suja de sangue.

6 Comments:

At 09 dezembro, 2005 18:09, Blogger Lia C said...

Fabuloso, CT!

Um beijo "enorme de grande"...

 
At 11 dezembro, 2005 02:10, Blogger 919 said...

cjt... também entro na tua claque... Esse conto arrepia! Pensar "resto a vida" em convivência com "desprezo"... Nem que o resto da vida fosse apenas mais uma hora!... Bolas!

 
At 11 dezembro, 2005 12:15, Blogger iNuno said...

A festa não são apenas os regressos, mas tb aquilo que motiva a que o pessoal retorne: os contontos!

I have no words.

 
At 11 dezembro, 2005 12:34, Blogger Lia C said...

E nós também te queremos mucho, unicórnio! E também eu te leio todos os dias...

Um beijo azul brilhante de sorriso para enfeitar as tuas árvores de natal.

 
At 11 dezembro, 2005 22:13, Blogger Alberto Oliveira said...

Um conto de "arrepiar" mas com um belo envolvente! Parabéns!


Mas o gajo não podia ao menos limpar a sachola?!
(desculpa, não me contive...)

 
At 11 dezembro, 2005 23:11, Blogger isabel mendes ferreira said...

e depois? ....fica-se assim. esmagado. bjo.

 

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