31 outubro 2005

O tesouro

Um homem andou trinta anos no fundo do mar, sempre sozinho, até que conseguiu reunir um tesouro enorme e espantoso como nunca ninguém viu em sítio algum. Havia estrelas do mar com espuma incrustada, peles de sereia bordadas com algas de muitas cores, pérolas de sorriso doce, búzios de sons de ventos do outro lado do mundo, corais acordados, e outras coisas tão mágicas que nem sequer têm nome. O homem sabia que tinha o tesouro maior e mais rico de todos os tesouros que havia, e por isso, sensatamente, pensou: Vou ter que guardar muito bem o meu tesouro, não vão aparecer ladrões e querer levá-lo. E vou ter que o esconder realmente bem escondido, porque se as pessoas sabem que tenho um tesouro assim, hoje uma amanhã outra, começam a pedir coisas e lá se vai a minha fortuna. E decidiu construir um castelo para guardar o tesouro. Fez um castelo enorme, todo de pedra, com paredes tão altas que o fim não se via do chão e tão grossas que um minuto demorava três horas para atravessar. O castelo tinha só uma porta, muito pequenina e muito grossa, feita da madeira mais dura que o homem conseguiu encontrar. Com medo que a tranca de ferro não fosse suficiente para impedir a entrada dos ladrões, o homem fez um fosso à volta do castelo e encheu-o com água e crocodilos, e só então se sentiu sossegado e saiu para passear e visitar velhos conhecidos. Bebeu cerveja em casa de um, comeu pão doce em casa de outro, e contou todas as histórias que tinha para contar a toda a gente que quis ouvir. Depois, quando a noite estava quase a despedir-se para recolher ao sítio onde costuma descansar, voltou para o castelo do tesouro e viu uma estrela do céu sentada no sofá. Ficou todo contente por se ter esquecido de fazer o telhado.

Folhas Brancas de Outono

É no espairecer da tarde, naquele lusco-fusco entremeado de nuvens em que observo um improvável por do sol que, por vezes, fico sem a certeza de pertencer ainda a este mundo.
Entre dois cigarros tento fazer o balanço de um dia e invariavelmente fico com a sensação de ter algo por acabar, de ter esquecido qualquer coisa que a seu tempo há-de revelar a sua importância. Olho em volta abarcando a praia agora cinza pintalgada de seres que passeiam de mão dada beijando-se ocasionalmente num rasgo de juventude ainda fértil em ideias de vida e projectos de felicidade e penso nos seus futuros. Quantos deles hão-de passar a vida a fazer o que gostam de fazer, quantos deles hão-de ter a hipótese de construir a vida à sua medida? Quantos de outros hão-de sobreviver em trabalhos que lhes foram destinados simplesmente por troca de um ordenado? Quantos vão ser eternamente enamorados e quantos hão-de passar a cumprir o dever matrimonial? Quantos ainda hão-de manter-se fiéis aos seus e a si e quantos hão-de ultrajar o seu ser ou serem ultrajados na sua alma?
Desço à terra para observar a folha em branco deitada na mesa mesmo ao lado do círculo molhado feito pelo último copo.
Peço outro, acendo um cigarro, pego na caneta.

É no espairecer da tarde, naquele lusco-fusco entremeado de nuvens em que observo um improvável por do sol que, por vezes, fico sem a certeza de pertencer ainda a este mundo, escrevo. E a seguir, nada.
Dantes desenhava em vez de escrever. Desenhava em tudo o que aparecesse, papéis, guardanapos, toalhetes, carteiras de fósforos, desenhos simples na sua confusão e sempre a preto e branco, como a praia que agora vejo à minha frente. Ultimamente, nem por isso.
Falta-me a mão para o desenho, a paciência para a escrita, a alma para pensar. Tenho desenvolvido a arte de entregar folhas brancas por capítulos. Sempre como se tivesse esquecido algo importante.
Há qualquer coisa no fim do dia que me faz balançar entre o sentido do dever cumprido e a sensação de que não fiz absolutamente nada. Talvez seja aquele retorno a casa, aos meus, sem nada de novo para dizer.
“Então, tudo bem? Como te correu o dia?”, perguntaremos uns aos outros. “Então? Foste feliz hoje?”, perguntaríamos se quiséssemos saber. “O que posso fazer para que fiques feliz agora?”, seria a pergunta última e, a partir daí trabalharíamos no assunto.
No entanto, por minha parte, a resposta a tal pergunta seria extremamente difícil. É que, a olhar a praia agora cinza, não consigo pensar no que me falta para a felicidade. Não consigo sequer definir a felicidade que tenho ou não, não sei.
Os seres de mão dada vêm já para cima que o amor que sentem não chega ainda para os proteger do frio que começa a fazer-se sentir.
Olho para a folha em branco uma vez mais. Arquivo-a junto com todas as outras.
Tanto a dizer, tanto a pensar, nada a escrever.

Vou para casa, para o quente da minha casa, para o quente das mãos que lá me esperam.
A felicidade deve ser uma coisa muito parecida com isso.
A folha amanhã deverá ser outra.

30 outubro 2005

Pinguim

Um dia o pinguim foi até à beira da água e chamou Tartaruga Tartaruga. E a tartaruga apareceu cansada de ser tão velha porque as tartarugas vivem muitos anos e quase sempre dentro de água. Olha tartaruga disse o pinguim tenho uma nódoa no fato. Os pinguins usam sempre fatos de cerimónia não se percebe bem porquê mas a verdade é que é muito difícil imaginar um pinguim vestido de carpinteiro. A não ser que o carpinteiro esteja vestido para ir a uma cerimónia. É sempre assim. E agora o que é que eu faço perguntou o pinguim à tartaruga porque nisto as tartarugas são boas. Sabem muita coisa porque vivem muitos anos e quase sempre dentro de água. Já sei que já tinha dito isto mas gosto de figuras de estilo. Também sei que isto não é uma figura de estilo. A tartaruga disse olha pinguim não sei. Nem sequer conheço o estilo para saber se tem figura. Isto deve ser só figura. Aqui sou eu a falar não é a tartaruga. Que maçada disse o pinguim logo no meu melhor fato. Logo no meu único fato queixou-se o pinguim. Olha disse a tartaruga não te preocupes. É uma nódoa de quê perguntou depois. De quê perguntou o pinguim meio arreliado. É uma nódoa uma boa nódoa e não sei mais nada disse ele. A tartaruga não percebeu porque as tartarugas pensam de maneira muito diferente dos pinguins. É uma nódoa como tu e como eu disse o pinguim ou tu és uma tartaruga de quê perguntou-lhe. Não disse a tartaruga eu sou só tartaruga mais nada. Pois disse o pinguim. Eu também sou só pinguim e a nódoa também é só nódoa mais nada. Aqui é um parêntesis para dizer que também foi o pinguim que disse isto. Afinal não era preciso eu dizer que foi o pinguim porque se vê logo pela maneira como a frase começa. A outra pois. A frase. Então não há nada a fazer disse a tartaruga. Acho que foi isto que ela disse mas não garanto. Parece que não sou precisa nesta história. Estória. A minha avó só me ensinou as receitas para nódoas de qualquer coisa não me disse nada sobre nódoas sem mais nada disse a tartaruga e foi-se embora. Para dentro de água que é onde as tartarugas passam a maior parte dos muitos anos que vivem. Ainda não acabou agora é que interessa. Então o pinguim disse à nódoa Nódoa gosto muito de ti mas por favor vai-te embora. As nódoas não falam. E a nódoa foi mesmo embora porque o pinguim gostava muito dela. É estranho não é porque é que as tartarugas vivem mais tempo que os pinguins. Pergunto eu.

29 outubro 2005

Paixão

Conheceram-se por acaso no pub mais frequentado do bairro. Ele a sorver o pouco de whisky puro que ainda havia no copo, ela a saborear calma e delicadamente o que restava da tosta mista com muita manteiga. Uma troca de olhares - o dele sedutor e seguro, o dela carregado de promessas e mistérios - e a paixão inflamou-os, intensa e incontida. Juntos inventaram outras formas de fazer amor, só deles, e encheram a noite de todos os sonhos possíveis. De manhã ela partiu sem sequer dizer adeus. As moscas são mesmo assim.

28 outubro 2005

Problema

Andou três anos a planear o assalto perfeito à joalharia da esquina. Foi um sucesso. Chegou a casa com material bastante para comprar um iate e fazer um cruzeiro de luxo durante o resto da vida. Um sonho, é claro. O problema foi a polícia bater-lhe à porta meia hora depois. Tinha deixado uma expressão digital perdida no trajecto.

27 outubro 2005

Coisas Assim

Vendem-se sonhos, anunciava o letreiro pintado à mão pendurado na porta verde entreaberta. Empurrei a porta, que rangeu nos gonzos e fez soar uma campainha rouca de tanto anunciar entradas. Lá dentro havia uma fila de oito pessoas. Dois homens carecas, um quarentão o outro nem tanto, três mulheres muito pintadas na casa dos trinta ou assim, um velhote cabeludo de barbicha e um par de jovens adultos de sucesso e casaco aos quadrados. Senti que destoava, mas isso é coisa que há muito me habituei, portanto respirei fundo e olhei – primeiro para os meus sapatos depois para trás. Na parede, por cima da mesa de madeira polida com uma caixa de impressos, mais um letreiro na mesma letra rebuscada: Obrigatório o preenchimento do questionário. Abeirei-me da mesa e peguei num impresso. Idade 25. Sexo feminino. Costuma ter dificuldade em sonhar? Não. Já alguma vez utilizou os nossos serviços? Não. Passe directamente ao item 7, s.f.f.. Li o item 5. Sentiu-se satisfeito com os nossos serviços? Não respondi. Depois o 6. Qual ou quais o(s) tema(s) do(s) sonho(s) anteriores? Deixei em branco. Pretende sonhar a preto e branco ou a cores? A preto e branco. Passe directamente ao item 9B, s.f.f.. Li o 9A. Qual o tema que pretende sonhar? (Assinale apenas uma opção, s.f.f.). Da lista constava sexo, odontologia, fantasia, romance (subdividido em com final feliz com final infeliz e sem final), arquitectura, suspense, fábula, viagem (subdividida em aérea – de avião de balão – marítima – submarino jangada veleiro iate – terrestre – todo o terreno tractor comboio), metereologia, gastronomia, ficção científica, outros (indique só um tema, s.f.f.). Passei ao item 9B. Qual o tema que pretende sonhar? (Assinale apenas uma opção, s.f.f.). A lista era diferente: sexo, xadrez, claustrofobia, economia, apendicite, outros (indique só um tema, s.f.f.). Foi aqui que as coisas começaram a correr mal. Escolhi outros. Nunca sonhei que voava, por isso escrevi VÔO no espacinho reservado à indicação do tema. A palavra desfez-se. Desfez-se pouco a pouco, até desaparecer por completo. Tentei de novo, a carregar com mais força na caneta: VÔO. A , mesma história, a tinta a sumir-se lentamente até desaparecer por completo e deixar o espaço em branco como se nunca eu tivesse escrito. Tentei mais seis vezes no espaço de poucos minutos e sempre o mesmo resultado. Mudei de tema: Panela levou mais tempo a sumir-se mas vi logo que não dava. Sapatos, baratas, relógio, vácuo, geometria, agricultura, verniz, ostras, surpresa, tudo se sumiu da mesma maneira. Desisti de vez e saí dali sem perceber. Estas coisas revoltam-me. Detesto questionários mal feitos e canetas que teimam em não escrever. Coisas temperamentais, dum modo geral. Mas consegui esquecer o assunto. Até hoje, pelo menos. Hoje chegou no correio uma factura de €100. Por sonhos prestados, tema vago, pesadelo profissional. Vou-me queixar.