28 novembro 2005

Ainda hoje. Agora.

Andava à procura desde sempre. Tinha percorrido todas as vielas escuras da cidade, caminhado os caminhos desérticos do interior, batido às portas mais improváveis.
Bateu a portas de tabernas de hálitos pesados de noite, entrou em palheiros de natais alheados, conheceu bairros onde o infortúnio era já forma de vida. Andou por paragens esquálidas de fome, calor e frio paralisantes, cada qual à sua maneira, virou caixas de lixo e recordações, assinaturas de vidas que não conheceu. Viu janelas que deixavam passar risos entrecortados e carícias natalícias.
Procurava. Desde sempre.
Conheceu nomes que nem sequer sabia soletrar, leu letras que não sabia existirem. Deu de caras com caras bibliotecas que lhe prometiam o caminho, com deuses que o ultrajaram na demanda.
E viu homens que o olhavam com ar de quem goza.
Continuou a procurar, sempre, para sempre.
Pelos montes de neves eternas, pela frondosa via de amendoeiras em flor, por mares e rios, por terras onde os tecidos cheiravam a rosas e onde as mulheres se banhavam em leite e mel, por sítios onde monstros o acompanharam com um sorriso entre fabulosas presas.
Procurava, continua à procura.
Em navios de corsários destemidos, em guerras passadas de ferros retinidos, em flores oferecidas no alto de uma torre de menagem, nos castros, nas eiras, nos campos, nos caminhos, nas veias, no sangue, na alma, no céu, em si.
Ainda hoje.
Agora.
E só não mostra fotografias porque o resto do blog também as não usa.

27 novembro 2005

Amarelo

Era uma vez uma flor amarela que vivia num grande jardim com muitas outras flores de muitas cores. Era um jardim muito bonito. Um dia apareceu no jardim um homem com uma tesoura enorme e um cesto ainda maior e começou a cortar as flores e a pô-las no cesto. Uma a uma, foi cortando todas as flores até que chegou à última, que por acaso era a flor amarela, e disse: "Que flor tão feia! Vou deixá-la aqui para não destoar no meio das outras flores que são tão bonitas..." E foi-se embora sem cortar a flor amarela. E a flor ficou ali sozinha e triste, cabisbaixa e abatida, a olhar para o pé (porque as flores só têm um pé) e a pensar na vida, com uma grande mágoa por ser tão feia e uma certa inveja de não ter tido a mesma sorte de todas as amigas. Passou assim dias e dias, a olhar para o pé e a pensar, até que por fim se decidiu: "feia ou bonita, vou enfeitar o jardim o melhor que puder". Então levantou a cabeça e estendeu as pétalas e as folhas até onde conseguiu, e enfeitou o jardim sozinha durante muito tempo. Mas um dia o vento, que passou por acaso no jardim para empurrar a primavera, viu a flor amarela sozinha e perguntou: "Flor, porque é que estás tão sozinha num jardim tão grande?" E a flor disse. "Deixaram-me sozinha porque sou feia, tão feia que destoo no meio de todas as outras flores que havia neste jardim. É por isso que estou sozinha." Então o vento falou com outros ventos e com o deus de todos os ventos e suavemente levantou a flor e transformou-a numa borboleta eterna, com todas as cores de todas as flores. É a Mãe-Borboleta.

Em síntese...

... os fins de semana são bichos tramados que me devoram o tempo sem respeito algum pela necessidade de comentar blogs alheios. Ainda por cima a semana passada começou o fim aí na 4ª feira, e esta semana já puxou o final para o primeiro dia. Quer-me parecer que não vou ter sorte nehuma! E isto não é um conto, claro... embora seja suficientemente tonto.

23 novembro 2005

Traição

Cheguei do baile já tarde
e encontrei-o sozinho a chorar
à luz da última estrela
O teu amor? perguntou-me
E eu disse já cansada
Não há amor que me queira
por isso não trago nada

Encolheu-se como um feto
e não quis a minha festa

Hoje
pouco antes de partir
com um sorriso de adeus
deu-me um beijo
num abraço terno
e confessou num murmúrio
envergonhado
Há dias
em que até um destino
chora
por se sentir
tão traído.

22 novembro 2005

Solsaio ou vice versa

Um dia um homem foi passear para o jardim. O jardim era muito bonito, mas o homem às tantas ficou com sono e adormeceu. Quando acordou sentiu uma nuvem na cabeça e pensou Que estranho, sinto uma nuvem na cabeça! Mas não ligou muito. Levantou-se e continuou a passear pelo jardim. Foi andando, andando, andando, até que às tantas começou a reparar que as outras pessoas que também andavam a passear no jardim olhavam para ele duma forma estranha. Olhavam de soslaio mas o homem não sabia. Ora esta pensou o homem o que é que se estará a passar? Foi então que ouviu um menino dizer mamã mamã aquele senhor tem uma nuvem na cabeça mamã mamã também quero uma nuvem na minha cabeça. A mamã do menino não achou bem e disse que vergonha meu filho não podes querer uma coisa tão feia. O senhor ficou muito envergonhado e resolveu ir comprar um chapéu para tapar a nuvem. Vou comprar um chapéu para tapar esta nuvem resolveu o homem. Foi a uma chapelaria e disse à menina que estava ao balcão quero comprar um chapéu. Percebo disse a menina a olhar para ele também de soslaio. E mostrou-lhe um chapéu muito bonito. Que chapéu tão bonito disse o homem vou levá-lo. E saiu todo contente com o chapéu em cima da nuvem em cima da cabeça mas de repente percebeu que estava com muita fome e por isso foi a um café e pediu uma pata de veado e uma bica se faz favor. O empregado olhou para ele de soslaio e ainda por cima não havia patas de veado. O homem ficou triste e resolveu ir ao médico tratar do problema da cabeça. Vou ao médico pensou o homem e foi. Quando o viu o médico disse olhe o senhor tem uma nuvem na cabeça. O homem disse eu sei senhor doutor isto tem-me dado imensos problemas. O médico olhou para ele de soslaio e disse olhe nunca vi nada assim mas vou-lhe receitar umas vitaminas e pode ser que isso passe. E receitou-lhe umas vitaminas. O homem comprou as vitaminas e foi para casa. Olha tens uma nuvem de chapéu na cabeça disse a mulher do homem. Eu sei mulher disse o homem isto tem-me dado imensos problemas mas já fui ao médico e ele receitou-me estas vitaminas. A mulher olhou de soslaio para as vitaminas e disse que bom. Depois foi fazer o jantar. O homem não gostava de fazer o jantar por isso foi ver televisão. A nuvem não gostava de ver televisão por isso foi-se embora. Com as vitaminas, que era afinal o que ela queria.

Conclusão: as vitaminas desempenham um papel fundamental no olhar de soslaio da mulher do homem com uma nuvem na cabeça e o pobre chapéu acaba por ficar sozinho.

20 novembro 2005

cor-de-rosa

O meu quarto é cor-de-rosa. Nem sequer gosto muito de cor-de-rosa, mas isso não interessa nem faz mal nenhum. Apesar de tudo é um bom quarto, sem qualquer dúvida que atacar me possa. Não me chateia muito, é calado, calmo e sossegado, e a prova é que nunca falou comigo nem nunca saiu dali, sempre quietinho ao fundo do corredor. Deram-me este quarto há tanto tempo que já não me lembro. Sempre o conheci assim, com manhas e recantos, por isso habituei-me a pensar que nasceu comigo, embora seja cor-de-rosa. Bem, uma pessoa às vezes engana-se, acho eu. Quer dizer, nunca pensei que o meu quarto me viesse a dar problemas, é só isso. Já disse que ele tem manhas, claro, mas essas não me preocupam porque são iguais a todas as manhas de todos os quartos cor-de-rosa, e uma pessoa habitua-se. Só para dar um exemplo a quem não conhece quartos cor-de-rosa é assim: todos os quartos cor-de rosa têm a mania que são os mais giros, por isso gostam de se enfeitar com rendas, cortinas bordadas, colchas de seda (também cor-de-rosa), lacinhos e laçarotes e outras coisas assim; preferem usar perfumes doces e quentes, músicas de balançar, e flores pálidas e delicadas. São vaidosos, é o que é, e gostam de ser admirados, bajulados e mimados. Às vezes é difícil sair dum quarto cor-de-rosa por causa disso: mal se põe um pé fora da porta, percebe-se logo que o quarto cor-de-rosa se começa a queixar da luz muito forte, ou da luz muito fraca, ou do frio, ou do calor, ou do pó, ou de qualquer outra coisa, e então é preciso voltar atrás e recompor tudo segundo a vontade que ele mostra no momento. E isto pode acontecer trinta vezes seguidas. Quer dizer: se a luz está muito forte e nós fechamos um pedacinho as cortinas, quando vamos a sair outra vez percebemos logo que agora a luz está muito fraca e temos que voltar atrás e abri-las um pedacinho mais, e depois percebemos que a luz está outra vez muito forte e voltamos atrás e fechamos outra vez as cortinas um pedacinho mais, e assim até a luz ficar bem. Mas não acaba aqui. Quando a luz já está bem, é a almofada cor-de - rosa que o está a incomodar: e lá voltamos atrás outra vez, e rodamos a almofada um bocadinho mais para a direita, depois um bocadinho mais para a esquerda, depois outra vez um bocadinho mais para a direita, assim. Às vezes são mesmo trinta vezes, sem exagero nenhum. E isto é só um exemplo, como já disse. Outro exemplo é que não se pode falar alto num quarto cor-de-rosa porque lhe faz dores de cabeça. Todos os quartos cor-de-rosa sofrem de enxaquecas, coitados, ou então se não sofrem fingem que sim, mas acaba por dar no mesmo porque ficam com mau aspecto. Se se falar alto, é o que eu quero dizer. Também sofrem de insónias, mas isso é mais no inverno e resolve-se depressa se lhes contarmos uma história. Há coisas piores, mas pronto. Na verdade nem é assim tão mau, embora possa parecer a quem não conheça as manhas dos quartos cor-de-rosa. São realmente um bocado temperamentais, mas uma pessoa habitua-se e acaba por perceber que até são simpáticos, embora amuem se não lhes fizermos as vontades. Bem, os quartos cor-de-rosa sempre foram assim e é assim que o meu quarto era. Acho que perceberam isto. Mas ontem o meu quarto mudou. Não mudou de sítio, mas mudou tanto que já não o conheço e não sei o que é que hei-de fazer. Só porque lhe abri a janela-que-dá-para-o-jardim-que-tem-o-lago-virado-ao-sol, começou a rir, a rir, a rir, a rir, e até agora ainda não se calou. Será que a janela estava estragada?

18 novembro 2005

A VERDADEIRA E TRISTE HISTÓRIA DO CONDE ALBUHAN DE ALBAHAH, SENHOR DE AN COLIDID, E DOS SEUS AMORES PELA PRINCESA INDRA AL A BIT, FILHA

do grande Rei Atchim Oc Pena e da Rainha Semnome, que foi presa pela Fada dos encantos perdidos no Castelo da Pata dos ovos estrelados onde o Senhor Han Palassad, sapateiro do Reino de O Liv Al Penedo (onde todos moram) costuma ir passear no seu cavalinho das pernas tortas para apanhar as amoras que crescem à beira do lago das águas tranquilas onde vive o peixe azul com asas de borboleta.


História

O conde apaixonou-se pela princesa e morreu de amor.

Moral da história - primeira

É preciso ter muita lata.

Moral da história - segunda

As pessoas nem sempre são aquilo que parecem.


Moral da história.- terça

As pessoas nem sempre parecem aquilo que são.

Conclusão das morais

É preciso ser muito profundo.


Explicação da Moral da História - primeira

Ninguém foi ao funeral com a desculpa de que as flores são muito caras, mas a verdade é que a Fada não gostava do conde. O hipopótamo, que só por acaso é que não entra nesta história, foi o único que se dignou chorar. Duas lágrimas de crocodilo.

Explicação da Moral da História - segunda

O sapateiro Han Palassad sofre de bicos de papagaio porque o seu cavalinho das pernas tortas é coxo e o peixe azul com asas de borboleta só aparece nos sonhos.

Explicação da Moral da História - terça

A pata dos ovos estrelados não põe ovos estrelados. Nem sequer põe ovos. E mesmo que pusesse ovos estrelados não ia servir de nada porque a Rainha Semnome é afinal a Fada dos encantos perdidos. O que também é mentira porque nunca teve encantos. A fada-rainha.

Explicação da conclusão das morais

Se o grande Rei Atshim Oc Pena não fosse tão sensato, o sapateiro comia-lhe as amoras todas.



FIM


09 novembro 2005

Esta coisa desapareceu!

Não vejo o blog mas consigo editar... é fabuloso!

08 novembro 2005

Avestruz

Era uma vez uma avestruz. As avestruzes são bichos prudentes porque enterram a cabeça na areia mal sentem o perigo aproximar-se. Ninguém percebe como é que as avestruzes não morrem asfixiadas quando enterram a cabeça na areia, mas a vida é mesmo um mistério e este é um dos mistérios da vida. Ou talvez não. Se calhar é só falta de informação, mas como as avestruzes não falam continua a ser um mistério. Às tantas as avestruzes nem sequer precisam de respirar. Ora esta avestruz não era prudente, coitada, mas de resto levava uma vida normal. Talvez se possa pensar que não era prudente porque tinha medo da areia ou sofria de claustrofobia ou apenas porque respirava, mas neste caso não adianta nada pensar porque também não se sabe. O que se sabe é que um dia andava esta avestruz a passear no jardim quando sentiu o perigo aproximar-se. Vai não vai, ainda se lembrou de esconder a cabeça debaixo da asa, mas a asa recusou-se a servir de tapador e antes que a avestruz pensasse mais já o perigo estava ao pé dela. "Avestruz" disse o perigo "estás tramada!". "Porquê?" perguntou a avestruz. "Porque eu sou um perigo", disse o perigo. "E qual é o teu problema?" perguntou a avestruz. Esta avestruz além de não ser prudente era um bocado filósofa. "Não tenho problema nenhum" disse o perigo. "Sou um perigo muito bom, acabadinho de sair da escola superior de formação de perigos". "Oh!", disse a avestruz, "um perigo diplomado! Que bom, que bom!" e começou a bater palmas. Claro que não eram palmas porque as avestruzes não têm mãos, mas o perigo percebeu e ficou muito contente. "É uma pena ter que te tramar porque és muito simpática" disse o perigo à avestruz. "E tu és um perigo muito bonito" disse a avestruz ao perigo. E puseram-se a falar do tempo e dos mistérios da vida, até que o perigo teve mesmo que tramar a avestruz e casou com ela. Tiveram muitos filhotes e viveram felizes para sempre. Desde então todos os perigos tentam casar com as avestruzes, mas nunca mais resultou porque as avestruzes não gostam de perigos e teimam em enterrar a cabeça na areia.

Prova dos nove: não se conhecem avestruzes que não sejam perigosas.

Moral da prova dos nove: quem não tem asa quer casa, ou qualquer coisa assim.

07 novembro 2005

Bom dia

Acordou leve e bem disposto, como há muito tempo não se sentia. Depois dos imprescindíveis matinais, poliu vigorosamente a já reluzente careca e saiu, composto e sorridente, disposto a acolher a sorte que lhe ia encher o dia. Mas ao contrário de todas as intuições nocturnas, em vez de encontrar a sorte perdeu o norte logo ao virar da primeira esquina. Lembrou-se então que quem perde o norte perde a sorte, e assim aconteceu. Deu mais três passos e sentiu acabar-se o chão. Viu-se a voar sem saber como, ou quase sem saber como, porque havia velhinha. A velhinha baixou-se, apanhou-o e murmurou consolada: Que sorte, encontrei um alfinete! E espetou-o na lapela.

05 novembro 2005

O Sr. Assunção

Teve mesmo azar, o Sr. Assunção. Para quem não conhece, o Sr. Assunção foi o homem mais simpático e mais prestável que algum dia passou por estas bandas. Viveu aqui muitos anos, e nunca ninguém conseguiu arranjar a menor queixa para lhe apontar, por muito que se esforçasse. É que o Sr. Assunção não existe. Quer dizer, era um homem como não há outro, dedicado a toda a gente. Bastava imaginar que alguém tinha um problema, e logo o Sr. Assunção aparecia com a solução para o caso. Às vezes nem a própria pessoa sabia que tinha o problema e já o Sr. Assunção lhe trazia a cura para o mal, porque ao Sr. Assunção nada escapava. Por exemplo, se numa festa um cavalheiro se apresentasse descomposto com um cabelo na lapela do casaco, antes que alguém visse já o Sr. Assunção tinha delicadamente tirado o cabelo e endireitado a lapela. Ou se durante um jantar uma senhora se estivesse a engasgar, o Sr. Assunção, com todo o cuidado e depois de pedir licença, dava-lhe as três palmadinhas nas costas e a senhora já não chegava a tossir. Era assim, o Sr. Assunção. Um dia, saiu vestido de luto logo de manhãzinha e perguntaram-lhe Quem morreu, Sr. Assunção? e ele disse Foi o Zé Bento Careca, e toda a gente se riu porque o Zé Bento Careca estava ali mesmo em frente muito vivo. Mas o Zé Bento Careca não riu e morreu, e realmente viu-se logo que o Sr. Assunção era o único que estava preparado para o funeral. Estava sempre pronto a ajudar, o Sr. Assunção, por isso a culpa não foi dele. A culpa foi do pobre Octávio, o próprio, que não se conseguiu calar. Já devia saber como era o Sr. Assunção, mas pelos vistos nunca tinha reparado ou então fez de propósito. Seja como for, o pobre Octávio é que fez mal. Quando o Sr. Assunção lhe perguntou Como vai Sr. Octávio?, o próprio Octávio devia ter dito apenas Bem Obrigado e o Sr?. Mas não. Não disse que estava bem, e queixou-se do mal com requintes de precisão: Esta noite não preguei olho. O Sr. Assunção pregou-lho, não merecia ser preso.

04 novembro 2005

A galinha

Durante semanas Aníbal tratou-a com todo o esmero e cuidado seguindo à linha as instruções publicadas no guia do apicultor, mas a galinha, bem instalada na sua gaiola vermelha pendurada na varanda, teimava em não cantar. Já a galinha da D. Rosa do 9º A cantava muito bem mesmo sem saber ler. E era gorda e punha ovos escalfados logo de manhãzinha, antes de vir o leiteiro. Foi por isso que tudo começou, como uma bolachinha de inveja quente e estaladiça, apetitosa. A inveja rói-se enquanto dura mas depois faz a pessoa roer-se e Aníbal, coitado, viu-se de repente atacado de pensamentos perversos: “A galinha da vizinha tem mais penas do que a minha; a galinha da vizinha canta melhor do que a minha; a vizinha da galinha tem uma televisão melhor do que a minha; a gaiola da vizinha tem uma galinha maior do que a minha; a vizinha da galinha na sua gaiolinha é… a galinha… a vizinha…” e por aí adiante, coitado. Não admira pois que o pobre Aníbal se começasse a roer. Como qualquer um, aliás. De início roeu só as unhas, mas as unhas depressa se acabaram e um dia teve que roer um dedo. Roeu o mindinho esquerdo e não lhe soube mal de todo, embora fosse um bocado adocicado. Nessa noite comeu três malaguetas e o indicador soube-lhe muito melhor. Um a um, Aníbal roeu todos os dedos, depois a mão, depois os outros dedos e a outra mão e um braço e outro braço. Foi mais difícil roer as pernas porque tinha que se dobrar muito, o que lhe causava dores nas costas. Mas roeu as costas e o problema passou. Roeu-se todinho a pouco e pouco, com entusiasmo e dedicação, até que lhe ficaram só os olhos e os dentes. Também roeu a vizinha, mas foi a Dª Alice do 6º C. Um dia, era Aníbal já só olhinhos e dentes, sentou-se calmamente na varanda a tomar banho de sol. Em má hora o fez porque a galinha, que era míope, confundiu os olhinhos com grãos de milho e comeu-os um a um até ficar de papo cheio. Depois cantou. Muito melhor que a galinha da vizinha. Aníbal ferrou-lhe os dentes.

03 novembro 2005

Indela

Cinco séculos depois da Batalha de Alcácer Quibir Indela continua à espera de D. Sebastião, o príncipe mais encantado que a memória carrega. Tão encantado que rei já era antes de desaparecer nem a lenda sabe como, e tão príncipe que rei continuará a ser no dia em que ressurgir da história e do nevoeiro.

Mas Indela não sabe tudo. Não sabe que em outras terras o rei se deixou encantar por uma menina descalça, de longos cabelos negros e olhos grandes de tanto sonhar. Não sabe como ele largou as armas e abandonou a guerra, sem cavalo, e andou três dias à procura da única flor que perfumava o deserto. Nem sabe o deserto em que se viu el rei quando perdeu de vista a menina de longos cabelos e pés de certezas. Ou como ele se sentiu quando ao longe reavistou a menina que recebeu a flor já murcha e a fez reviver.

Indela não sabe que o rei se descalçou e despiu a majestade para continuar a ser rei. Não sabe que dos recantos da alma lhe brotaram os cantos de um mundo que seduziu a menina. Não sabe as palavras que trocaram em linguagem de olhares, nem os gestos que inventaram e os caminhos que rasgaram para vestir o amor.

Indela não sabe que el rei não quer voltar da terra dos sonhos, onde todos os ventos se juntam e tecem mantos de nevoeiro para proteger os amantes. Indela não sabe tudo e por isso continua a espera. Um dia o rei não voltará.

02 novembro 2005

Risco

Diz a ostra para a pérola: O grande risco de saires da casca é poderes encontrar coisas bonitas.

01 novembro 2005

O Tal Bar

Foi num bar
Na tua rua
Estavas de copo na mão
Olhei p´ra ti
Quase nua
A dançar junto ao balcão
No teu corpo insinuante
A tatuagem se via
Tua boca provocante
Convidavas
Eu sabia
Saímos,
Deste-me a mão…
Sem o meu nome saber
Pensei que era uma visão
Afinal estava a viver
As estrelas
Cintilaram
Pedaços do céu caíram
Nossas vidas se cruzaram
Nossos corpos
Se fundiram
Acordei
Estava a sonhar
O tal bar
Não existia
Destroçado
A vaguear
Só o teu corpo sentia



Dez/02
Leandro

(Porque há coisas que merecem sair da gaveta. )
Obrigada, Mansoa.