O meu quarto é cor-de-rosa. Nem sequer gosto muito de cor-de-rosa, mas isso não interessa nem faz mal nenhum. Apesar de tudo é um bom quarto, sem qualquer dúvida que atacar me possa. Não me chateia muito, é calado, calmo e sossegado, e a prova é que nunca falou comigo nem nunca saiu dali, sempre quietinho ao fundo do corredor. Deram-me este quarto há tanto tempo que já não me lembro. Sempre o conheci assim, com manhas e recantos, por isso habituei-me a pensar que nasceu comigo, embora seja cor-de-rosa. Bem, uma pessoa às vezes engana-se, acho eu. Quer dizer, nunca pensei que o meu quarto me viesse a dar problemas, é só isso. Já disse que ele tem manhas, claro, mas essas não me preocupam porque são iguais a todas as manhas de todos os quartos cor-de-rosa, e uma pessoa habitua-se. Só para dar um exemplo a quem não conhece quartos cor-de-rosa é assim: todos os quartos cor-de rosa têm a mania que são os mais giros, por isso gostam de se enfeitar com rendas, cortinas bordadas, colchas de seda (também cor-de-rosa), lacinhos e laçarotes e outras coisas assim; preferem usar perfumes doces e quentes, músicas de balançar, e flores pálidas e delicadas. São vaidosos, é o que é, e gostam de ser admirados, bajulados e mimados. Às vezes é difícil sair dum quarto cor-de-rosa por causa disso: mal se põe um pé fora da porta, percebe-se logo que o quarto cor-de-rosa se começa a queixar da luz muito forte, ou da luz muito fraca, ou do frio, ou do calor, ou do pó, ou de qualquer outra coisa, e então é preciso voltar atrás e recompor tudo segundo a vontade que ele mostra no momento. E isto pode acontecer trinta vezes seguidas. Quer dizer: se a luz está muito forte e nós fechamos um pedacinho as cortinas, quando vamos a sair outra vez percebemos logo que agora a luz está muito fraca e temos que voltar atrás e abri-las um pedacinho mais, e depois percebemos que a luz está outra vez muito forte e voltamos atrás e fechamos outra vez as cortinas um pedacinho mais, e assim até a luz ficar bem. Mas não acaba aqui. Quando a luz já está bem, é a almofada cor-de - rosa que o está a incomodar: e lá voltamos atrás outra vez, e rodamos a almofada um bocadinho mais para a direita, depois um bocadinho mais para a esquerda, depois outra vez um bocadinho mais para a direita, assim. Às vezes são mesmo trinta vezes, sem exagero nenhum. E isto é só um exemplo, como já disse. Outro exemplo é que não se pode falar alto num quarto cor-de-rosa porque lhe faz dores de cabeça. Todos os quartos cor-de-rosa sofrem de enxaquecas, coitados, ou então se não sofrem fingem que sim, mas acaba por dar no mesmo porque ficam com mau aspecto. Se se falar alto, é o que eu quero dizer. Também sofrem de insónias, mas isso é mais no inverno e resolve-se depressa se lhes contarmos uma história. Há coisas piores, mas pronto. Na verdade nem é assim tão mau, embora possa parecer a quem não conheça as manhas dos quartos cor-de-rosa. São realmente um bocado temperamentais, mas uma pessoa habitua-se e acaba por perceber que até são simpáticos, embora amuem se não lhes fizermos as vontades. Bem, os quartos cor-de-rosa sempre foram assim e é assim que o meu quarto era. Acho que perceberam isto. Mas ontem o meu quarto mudou. Não mudou de sítio, mas mudou tanto que já não o conheço e não sei o que é que hei-de fazer. Só porque lhe abri a janela-que-dá-para-o-jardim-que-tem-o-lago-virado-ao-sol, começou a rir, a rir, a rir, a rir, e até agora ainda não se calou. Será que a janela estava estragada?