30 dezembro 2005

ATÉ 2006

AGORA É QUE É...
FELIZ 2006 PARA TODOS, ATÉ AO PRÓXIMO ANO!
ENCONTRAMO-NOS NA PORTA MAIS A LADO...

27 dezembro 2005

A verdadeira história da pastorinha e do limpa-chaminés

Era uma vez uma linda pastorinha chamada Pastorinha que vivia numa cabana no monte com o seu rebanho. Um dia estava a pastorinha ainda a dormir quando ouviu bater à porta truz truz. Quem é? Perguntou a pastorinha “é o limpa chaminés” disse o limpa chaminés. Não sei porque é que não era o carteiro ou porque é que o limpa-chaminés tocou duas vezes, mas foi assim mesmo que aconteceu. Talvez o limpa chaminés quisesse ter sido carteiro mas já não houvesse vaga, não sei, só sei que é destes mistérios que nasce a filosofia. A pastorinha disse Oh! Mas a minha cabana não tem chaminé. Que pena! disse o limpa chaminés e foi-se embora. No dia seguinte a pastorinha tinha de à cidade para vender o leite e comprar umas meias. Levantou-se muito cedinho, pôs as bilhas de leite à cabeça e aí vai ela toda contente a pensar na vida “vendo o leite, com o dinheiro do leite compro umas meias, com as meias faço um ninho, com o ninho faço galinhas, com as galinhas faço ovos, com os ovos faço bolos; depois vendo os bolos e compro um burro e vendo o burro e compro um carro e vendo o carro e compro um tapete para a cabana e vendo a cabana com o tapete e compro um castelo”. Assim foi: a pastorinha chegou à cidade, vendeu o leite, comprou umas meias, com as meia fez um ninho, com o ninho fez galinhas, com as galinhas fez ovos, com os ovos fez uns bolos e com o dinheiro dos bolos comprou um burro; depois vendeu o burro e comprou um carro e vendeu o carro e comprou um tapete para a cabana e vendeu a cabana com o tapete e comprou um castelo e foi morar para lá. Os primeiros dias foram muito bem passados, mas depois a pastorinha começou a sentir-se muito sozinha e a ficar cada vez mais triste. Agora vamos ver a parte do limpa chaminés. O limpa chaminés disse Que pena! e foi-se embora. Andou, andou, andou, até que chegou a uma floresta. Estava tão cansado que se deitou debaixo de uma árvore para dormir um bocadinho. Mal tinha adormecido quando começou a ouvir uns gritos “Olha um lobo olha um lobo” e acordou logo. Pôs-se à espreita atrás da árvore e sim senhor, lá vinha um lobo. “quem és tu?” perguntou o lobo ao limpa chaminés. “Sou o limpa chaminés” disse o limpa chaminés. “Eu sou o Lobo mau” disse o lobo mau “e o que é que andas aqui a fazer?” perguntou o limpa chaminés “vou levar o lanche à avozinha que está doente” disse o lobo mau “queres comer um bocadinho?”. O lobo mau era simpático e o limpa chaminés estava com fome mas não gostou do aspecto do lanche e por isso disse “não, lobo mau, obrigado mas neste momento não tenho muito apetite” disse o limpa chaminés que era muito bem educado “mas já agora se me pudesses dizer quem é que gritou olha um lobo olha um lobo agradecia-te muito”. O lobo mau ficou muito triste e disse “olha, quem grita isso é um menino muito irritante que passa o tempo a gozar com a minha maldição” E o lobo começou a contar:

22 dezembro 2005

A verdadeira história da gata boralheira

Era uma vez uma linda gatinha chamada borralheira que vivia com uma madrasta num T4 em Mem-Martins. Além da madrasta também lá viviam: as filhas da madrasta. As filhas da madrasta eram muito muito feias e muito más e a madrasta também. A gata borralheira era muito infeliz mas era muito boazinha por isso um dia pôs-se a chorar e a dizer Oh quem me dera conhecer a minha mãezinha e o meu paizinho e os meus imensos irmãozinhos. Esta ultima parte não foi assim porque ela ainda não sabia que tinha imensos irmãozinhos, mas a parte anterior é sic. Estava ela a chorar assim quando apareceu a fada-madrinha e disse Gata borralheira ouvi os teus lamentos e vim satisfazer os teus desejos. E pim! tocou com a varinha de condão na gata borralheira que logo ali se viu transformada numa linda menina. E quando se viu com perninhas a gata borralheira ficou muito contente e foi brincar para um jardim que havia ali perto. Saltou à corda uma tarde inteira, até que ficou muito cansada e se pôs a dormir debaixo duma árvore. Entretanto um menino mau atirou-lhe uma bola e ela acordou e pôs-se outra vez a chorar e a dizer Oh quem me dera conhecer a minha mãezinha e o meu paizinho e os meus imensos irmãozinhos. E apareceu outra vez a fada madrinha e disse “gata borralheira tens que parar com essa mania de estar sempre a chorar! Toma lá esta capinha vermelha com capuchinho e vai a casa da avozinha que é lá que estão os teus pais” “E onde é que é a casa da avozinha?” perguntou a gata borralheira “Não sei” disse a fada-madrinha “mas o capuchinho vermelho deve saber”. A fada madrinha disse isto e foi-se embora e a gata borralheira pôs o capuchinho vermelho e foi saltar à corda outra vez. Saltou, saltou, até que ficou com muita sede e foi à beira do lago para beber água. Ora quando se debruçou para beber água a capinha vermelha com capuchinho caiu para o lago e pim! transformou-se num belo príncipe de longos cabelos loiros montado num cavalo branco. O príncipe ficou muito contente e disse “Linda gata borralheira acabas de quebrar o encanto com que a bruxa má me enfeitiçou” e a gata borralheira perguntou “quem és tu?” e o príncipe disse “sou o capuchinho vermelho”. Apaixonaram-se logo ali, e partiram para casa do pai do príncipe capuchinho vermelho. Iam a caminho quando ouviram alguém a cantar ópera e pararam para ver. Foi assim que conheceram a cigarra e a formiga, que os convidaram para passar uns dias lá em casa e eles aceitaram. E foi por isso que o carteiro pensou que havia lá gato. E pronto, depois continuaram o seu caminho até que por fim chegaram a casa do pai do príncipe capuchinho vermelho que fez uma grande festa. Casaram e tiveram imensos filhinhos. A gata borralheira nunca mais chorou pela mãezinha nem pelo paizinho nem pelos imensos irmãozinhos. O cavalo branco acabou por abrir uma empresa de papel cavalinho e transformou-se num elegante empresário de sucesso. Entretanto continuavam a acontecer mais coisas, como por exemplo...

20 dezembro 2005

O Oleiro

Havia em Kara-Ob um homem, oleiro de ofício, que por herança da arte e segredos da inspiração conseguia do barro as mais belas formas que algum homem já fez. Chegou tão longe a fama do oleiro e da beleza das peças que um dia, já perto do lusco-fusco, lhe bateu à porta um estranho viajante com uma oferta e um desejo: “Trago-lhe o melhor pedaço do melhor barro do mundo. Quero uma obra perfeita.”

Seiscentos dias estudou o oleiro todas as formas ainda por inventar. Respirou com o barro o mesmo ar e anseios, e juntos procuraram o único meio possível de dar forma à perfeição. Do barro o homem conheceu a história e as vontades, tão completa e profundamente como só a cumplicidade de muitas luas permite conhecer. Finalmente pegou no barro. Oito dias e nove noites, sem interrupções, deixou o barro que o oleiro lhe extraísse as formas, até se realizar naquilo que ambos queriam que fosse: um tijolo. Perfeito.

18 dezembro 2005

Do crime

Adão Cordeiro era um pedinte de sucesso. Em poucos anos tinha amealhado um razoável pé de meia só com três horas de trabalho diário. Trabalhava também ao fim de semana, mas preferia ocupar três horas de sábado e outras tantas de domingo do que dividir essas seis horas pelos cinco dias úteis da semana. Não daria certo, sobrava sempre uma hora que não sabia onde pôr. Tirando esse pequeno senão, não se arrependia de ter posto de lado a sua promissora carreira de engenheiro informático, que lhe dava muito mais trabalho por pouco mais dinheiro. Nem se preocupava com as roupas sujas e rotas que era obrigado a vestir três horas por dia, sete dias por semana. Usava sempre o mesmo fato, e era esse que vestia no dia anterior, quando se preparava para sair e entrou a polícia a disparar perguntas, as tais perguntas sem resposta que o levaram até ali. Não se lembrava de nada e era isso que tinha dito vezes sem conta ao inspector que o interrogara, mas o outro não se dera por convencido e prendera-o. Agora, sozinho na cela, tinha justamente acabado de fechar os olhos para se concentrar em mais um esforço de memória quando a porta se abriu. O homem apresentou-se sumariamente por um cartão de visita com o canto superior direito devida e meticulosamente dobrado: “Dr. Alexandre Bitola, Advogado”. Interiormente persuadido de que também sumariamente, este último começou a relatar o caso. Alto, corpulento, bem vestido e apoiado numa bengala de cabo de prata, falava numa voz um tanto aguda, que destoava por completo da figura imponente que aparentava nos raros momentos em que se calava para respirar. Que tinha sabido do caso porque um amigo da polícia o tinha informado. Um caso curioso, que lhe agradou pelos pormenores macabros e o ar sádico com que o amigo o pintou. Um caso curioso e difícil, para o qual vinha oferecer os seus préstimos como advogado. Tinha já começado a inteirar-se do processo, mesmo sem prévia autorização e acordo do acusado - facto, aliás, pelo qual pedia imensa desculpa - por mera curiosidade e desafio intelectual. Sabia que a denúncia tinha sido feita pelo vizinho do rés do chão, um respeitável merceeiro à beira da falência, que se tinha aprestado a apresentar várias evidências à polícia, entre as quais figuravam uma factura de electricidade por pagar e um bilhete de comboio de uma viagem feita há 2 anos. Sabia também que quando a polícia lhe tinha invadido a casa com pós, flashes, as inevitáveis algemas e outros recursos abundantemente descritos na literatura do género, o corpo do crime, já putrefacto, continuava conforme o tinha deixado há três dias, em cima da mesa, sem pele, com uma faca espetada. A pele tinha sido encontrada no caixote do lixo a abarrotar, por baixo do lava-loiças, juntamente com uma lata de atum de conserva vazia, uma meia meia desfeita, oitenta e duas beatas de cigarros fumados até ao filtro, uma lâmina de barbear ensanguentada, um impresso do totoloto, duas saquetas de chá de camomila, trinta e sete ossos raspados (dos quais, após detalhada análise laboratorial, dezanove se vieram a revelar ser de frango e os restantes de porco), um CD irrecuperavelmente partido, cento e trinta e quatro gramas de restos de feijão manteiga guisado, etc, etc. O crime, já de si chocante, afigurava-se portanto particularmente hediondo e repugante.

Chegado a este ponto o advogado retirou do bolso uma fotografia a cores e abanou-a junto ao nariz do acusado, que distinguiu claramente um leve cheiro a naftalina. Depois aclarou a voz, tornando-a ainda mais aguda: - Sem querer fazer julgamentos morais, que de forma alguma são da minha competência, parece-me terrivelmente significativo e indicativo da sua falta de carácter a total ausência de respeito que demonstrou pela vítima… Caramba, homem!… ao menos tratasse-lhe da morte com dignidade! É insuportável pensar que conviveu com isto durante três dias sem se sentir minimamente incomodado. É… é monstruoso! Diga a verdade: porque é que a matou?

- Se bem que a verdade me seja uma coisa estranha - começou por dizer Adão Cordeiro - a verdade é que penso que não fui eu quem a matou. Nem sequer tinha motivo - disse esperançado na boa fé do advogado a retorcer as pontas do pequeno bigode louro e ralo. - Nem vejo que o pudesse ter… Que motivo podia eu ter?

O Dr. Alexandre Bitola, que se envergonhava do nome, anuiu com um aceno de cabeça, ar grave e pensativo: - Sim… também não sei que motivo podia ter… Mas a tal verdade que lhe é uma coisa estranha é que ela está morta e bem morta. Repare que não respira, não se notam batimentos cardíacos nem há qualquer sinal vital… sim, está morta e bem morta. E sem pele!

Adão Cordeiro confirmou os factos por pura observação ocular da fotografia a cores que o outro lhe mostrava. Ela estava morta. Não respirava, não se notavam batimentos cardíacos, nem havia qualquer sinal vital…Morta e bem morta e sem pele. Olhou para o advogado num mudo pedido de ajuda. O Dr. Alexandre, porém, prosseguiu como se nada tivesse notado: - E há a faca, claro… foi tolice deixar-lhe a faca espetada. É uma prova indiscutível que aponta claramente a sua participação no acto… a sua culpa, no fundo… é à faca que a acusação se vai prender. À faca e à pele, claro.

Foi-se toda a força defensiva de Adão Cordeiro. - Quanto leva para me representar em julgamento? - perguntou num múrmurio a enfiar-se ainda mais pelo casaco axadrezado sujo e de mau corte.

O Dr. Alexandre Bitola não precisou pensar muito: - Quinhentos contos de honorários, mais coisa ou menos, e despesas de representação. Preciso de um fato novo, uns sapatos, e uma nova gravata. E uma pasta de pele e um pacote de rebuçados de mentol por causa do mau hálito. Não que eu tenha mau hálito, mas tenho que causar boa impressão ao juiz… Digamos… mil e quinhentos contos, no total. O seu caso é extraordinariamente difícil…

- De momento não disponho de tanto dinheiro - lamentou-se Adão Cordeiro lembrando-se que os certificados de aforro só venciam daí a dois meses - Posso pagar-lhe as despesas de representação em géneros?

Embora com certo desagrado, o advogado acabou por aceitar a proposta, posto o que firmaram o acordo com um aperto de mão como se fossem amigos.

- Então até depois - disse o Dr. Alexandre Bitola a dirigir-se para a porta. - Tenho ainda muito trabalho pela frente. De repente voltou atrás e estendeu ao outro o pequeno retângulo de papel brilhante e colorido: - Pode ficar com isto.

Adão Cordeiro pegou com relutância na fotografia e um novo arrepio de horror percorreu-o ao rever a imagem do crime que lhe imputavam. Não havia por onde fugir: lá estava ela em cima da sua mesa, morta, sem pele, com uma faca espetada. Com espanto, deu consigo a pensar que quem quer que o tivesse feito tinha feito bem, porque a pele dela era enrugada e já sem vida mesmo antes de lha tirarem… Lembrava-se ainda de como era quando a trouxera para casa, sã, a pele lisinha e suave sem uma única mancha. Tinha-a trazido por puro capricho, só porque ela era linda e ele gostava de ter coisas lindas. Mas em raros momentos sentira prazer em olhar para ela e, tal como outras coisas na vida que se entretinham a contrariá-lo, em pouco tempo ela tinha deixado de ser como era. Depressa perdera o aspecto são e a pele, antes tão lisinha e suave, tinha-se enchido de manchas e rugas. A pele… Sentiu náuseas… Pouco a pouco foi recordando como nesse dia chegara a casa exausto e cheio de fome depois de uma manhã particularmente difícil e pouco rentável; como sem sequer lavar as mãos almoçara em silêncio, olhando-a de quando em vez, com um sentimento íntimo de repulsa por ela e pela presença dela ali, a desafiá-lo só por existir e lhe lembrar que havia muitas outras iguais a ela. Demorara a engolir a última garfada do esparguete demasiado cosido, como se engoli-la tornasse inevitável fazer o que sabia já ter decidido. E fez, sabia agora…pegara na faca e, sem aviso, começara a tirar-lhe a odiosa pele com uma fúria crescente de nojo… depois, cego de raiva, espetara-lhe a faca e ali mesmo a largara, em cima da mesa, para correr à casa de banho e vomitar todo o almoço sem sobremesa… Sim, fora ele… Desde miúdo que detestava maçãs.

15 dezembro 2005

Três verdadeiras histórias para despachar o assunto

A verdadeira história de Alibabá e os quarenta ladrões

Era uma vez um menino muito esperto que se chamava Alibabá e os quarenta ladrões e vivia com sua mãe em casa da avozinha. Um dia o menino foi brincar para o sótão de casa da avozinha e viu uma arca muito velha com muitas coisas lá dentro. Como era muito esperto o menino não mexeu nas coisas que estavam na arca. Em vez disso pensou “vou fazer uma canoa”. Mas não fez porque não havia canas. Andou por ali às voltas até que foi à janela do sótão de casa da avozinha e viu uma linda menina no jardim. Apaixonou-se logo por ela, claro, mas não disse nada à mãe nem à avozinha. Guardou o segredo dentro da arca e foi para o jardim onde a menina estava a bordar. Olá linda menina como é que te chamas? perguntou o Alibabá e a menina disse “Branca de neve e os sete anões e tu?” e o alibabá disse “olha eu chamo-me alibabá e os quarenta ladrões”. Vejam lá como são estas coisas, logo os dois com tantos números. E a branca de neve também se apaixonou logo ali pelo Alibabá. Agora para perceber o resto é preciso conhecer:

A verdadeira história de branca de neve e os sete anões

Era uma vez uma menina muito linda que se chamava branca de neve e os sete anões e morava com o pai e a mãe numa cabana perto de casa da avozinha. A Branca de neve tinha uma mãe muito má que a obrigava a guardar patos e a vender fósforos e por isso ela só podia bordar nas horas vagas. O pai da branca de neve também não era lá grande peça por isso ela costumava ir bordar para o jardim de casa da avozinha. Um dia estava a bordar e viu um menino muito esperto a espreitar da janela do sótão de casa da avozinha. Apaixonou-se logo por ele, claro, mas como não havia ali ninguém a quem ela pudesse dizer continuou a bordar. Então o menino veio ao pé dela e perguntou Olá linda menina como é que te chamas? e a branca de neve respondeu “Branca de neve e os sete anões e tu?” e o menino disse “olha eu chamo-me alibabá e os quarenta ladrões”. Vejam lá como são estas coisas, logo os dois com tantos números. E o Alibabá também se apaixonou logo ali pela branca de neve. Antes de continuar reparem bem como as histórias coincidem. Já repararam? É por serem verdadeiras. E agora:

A verdadeira história de Alibabá e os quarenta ladrões - resto
em simultâneo com
A verdadeira história de branca de neve e os sete anões - resto

O alibabá e os quarenta ladrões casou com a branca de neve e os sete anões e tiveram imensos filhinhos e uma filhinha que é nem mais nem menos que a gata borralheira. De resto deu-lhes zero porque nunca foram bons a fazer contas.

14 dezembro 2005

A verdadeira história da cigarra e da formiga - continuação - continuação

Afinal correu tudo conforme estava previsto. O carteiro voltou e tocou mais duas vezes. A formiga, que percebeu logo quem era, foi à porta e começou a cantar, vestida de cigarra. O carteiro não gostava de ópera mas como era bem educado ficou ali, a ouvir. Como a formiga nunca mais se calava o carteiro aproveitou para espreitar para dentro da toca do urso branco, e foi então que viu a verdadeira cigarra. A verdadeira cigarra era muito bonita. O carteio pensou “Aqui há gato” e havia. A gata borralheira estava na cozinha, mas ele não viu, só pensou. Depois não teve tempo para mais nada porque se apaixonou logo pela verdadeira cigarra. Casaram e foram muito felizes. Mas antes disso ainda tiveram tempo de inventar o play back que consiste na formiga a cantar e na cigarra a ser aplaudida. Porque esta cigarra nunca cantou bem. Fim. Agora mais outra

13 dezembro 2005

A verdadeira história da galinha dos ovos de ouro

Era uma vez uma galinha muito pobrezinha que vivia com um coelhinho num castelo. O dono do castelo e da galinha e do coelhinho era um senhor muito grande e muito feio que trabalhava numa fábrica de tintas de esmalte, estão a ver? Ao fim do dia, quando chegava do trabalho, o senhor muito grande e muito feio queria sempre que o castelo estivesse arrumado e limpo e que a galinha e o coelhinho estivessem ali para o servir. E eles estavam. Um dia, andava a galinha nas suas tarefas habituais quando pensou “Vou limpar o laboratório do senhor muito grande e muito feio”. O laboratório do senhor muito grande e muito feio era um laboratório. Era ali que o senhor muito grande e muito feio se dedicava a fazer as suas experiências com tintas de esmalte. Bem, a galinha entrou no laboratório e viu muitos frascos e muitas caixas e outras coisas assim, e resolveu coscuvilhar. Coscuvilhar é uma coisa que todas as galinhas sabem fazer muito bem. A meio da coscuvilhice a galinha encontrou um frasquinho de tinta de esmalte dourada. Já percebem agora o que é que aconteceu? Viu o frasquinho de tinta dourada, pôs um ovo, arrancou uma pena, e pintou o ovo com a tinta dourada. O ovo ficou muito bonito, claro, e a galinha foi logo mostrá-lo ao coelhinho “Coelhinho” disse a galinha “olha que lindo ovo que eu fiz”. O coelhinho bateu palmas e disse “Oh! É muito lindo! Vamos pô-lo a enfeitar a sala”. E pôs o ovo em cima do aparador da sala de jantar. Quando o senhor muito grande e muito feio chegou ao castelo e entrou na sala, viu aquele ovo muito bonito e dourado e disse “Olha um ovo de ouro!”. Ficou muito contente porque naquela altura achava mesmo que era um ovo de ouro. Então perguntou “Quem é que pôs este ovo?” porque era um bocado ignorante. E a galinha disse “Fui eu. ”. E o coelhinho disse “Fui eu”. O homem muito grande e muito feio não percebeu nada mas, como estava cheio de fome nem pensou mais no caso e fez uma omolete. A galinha ficou toda contente por não ter de fazer o jantar, e no dia seguinte tornou a ir ao laboratório e a pintar outro ovo. Desta vez o coelhinho pôs o ovo a enfeitar debaixo da cama do senhor muito grande e muito feio, e o senhor muito grande e muito feio teve um bocado de trabalho para o encontrar, mas pronto, lá o encontrou e tornou a fazer uma omolete. Isto continuou assim durante dias e dias, a galinha a pintar ovos, o coelhinho a enfeitar lugares, e o senhor muito grande e muito feio a fazer omoletes Um dia, ia a galinha para pintar outro ovo quando viu que se tinha acabado a tinta dourada. “Não faz mal”, pensou a galinha, “vou pintar um ovo azul com estrelinhas amarelas”. E pintou um ovo de azul com estrelinhas amarelas, porque esta galinha era uma verdadeira artista. Quando o senhor muito grande e muito feio chegou a casa e viu um ovo azul com estrelinhas amarelas em vez de um ovo de ouro, ficou tão furioso que quis logo matar a galinha. Já tinha a faca na mão e tudo...

Agora aqui é um parentes: vou ter que escrever três finais para esta coisa porque já não me lembro do que vem a seguir. Quando chegar a altura é só riscar os que não interessam...

Já tinha a faca na mão e tudo quando de repente sentiu uma dor aguda e morreu sem mais nem menos, com uma crise de fígado por ter comido tantas omoletes. A galinha assustou-se e começou a gritar Quem me dera ter sete pés!, Quem me dera ter sete pés!. Mas não tinha, por isso fugiu dali só a duas patas. Quem teve sorte foi o coelhinho, que ficou com o castelo só para ele. Ainda por cima encontrou um dia uma linda menina chamada cinderela e logo se apaixonaram. A linda menina também sabia pôr ovos, por isso o coelhinho aprendeu a pintar e dedicou-se a esconder ovos pintados durante o resto da vida. Acabou bem, o coelhinho. A galinha também acabou bem porque depois de algumas voltas foi parar a casa da avozinha e a avozinha ficou muito contente. Tratou da galinha com muito cuidado e fez uma grande festa. Acabou mesmo bem, a galinha. Em canja, porque a avozinha sabia que muitos ovos fazem mal ao fígado.

Já tinha a faca na mão e tudo quando de repente o coelhinho fez atcim! e plim!, transformou a galinha numa deslumbrante princesa. O coelhinho disse foi sem querer foi sem querer, mas nem o senhor muito grande e muito feio nem a deslumbrante princesa se importaram, porque viram logo que estavam apaixonados. Quem és tu deslumbrante princesa? perguntou o senhor muito grande e muito feio. Sou a bela, disse a deslumbrante princesa, e tu? sou o monstro, disse o senhor muito grande e muito feio. Foi uma sorte. Casaram e foram muito felizes. A princesa continuou a pôr ovos muito bons, e o senhor muito grande e muito feio continuou a comer omoletes até rebentar o fígado. Mesmo assim tiveram trinta filhinhos, todos lindos. O coelhinho foi padrinho de 23.

Já tinha a faca na mão e tudo quando a galinha disse “Olha lá, Senhor muito grande e muito mau, já alguma vez tinhas visto um ovo azul com estrelinha amarelas?” “Não” disse o senhor muito grande e muito mau “Então a minha ideia é esta” disse a galinha “Vais enriquecer num instante com ovos de páscoa. Eu ponho ovos e pinto-os como me apetecer, o coelhinho esconde-os onde lhe apetecer, e tu vendes bilhetes às pessoas que queiram procurar ovos mágicos.” E assim foi: o senhor muito grande e muito mau começou a dizer a toda a gente que havia ovos mágicos na zona do castelo dele e, como toda a gente gosta de ovos mágicos, fiou rico num instante. A galinha casou com o coelhinho mas fugiu passado um mês com o príncipe com orelhas de burro. Estas coisas são mesmo assim.

12 dezembro 2005

O Rei

Houve em tempos em Kara-Ob um rei de grandes riquezas e majestades que gostava de ser rei. Um dia, para ser mais rei que todos os reis do mundo, mandou que toda a cidade fosse forrada a espelhos. Assim foi feito. Contente andava o rei, que em cada saída real ao jardim podia admirar-se em trinta, ou quarenta, ou cem gravuras de si. Mas apenas o rei sabia gozar o esplendor da obra, porque os espelhos criaram mil cidades dentro da mesma cidade, com trezentas ruas por cada rua, e oitenta casas por cada casa, e vinte pessoas por cada pessoa. A cidade confundiu-se num labirinto de imagens de imagens de imagens de imagens, até ao infinito maior que o infinito conhece, de tal forma que as pessoas deixaram de saber quem eram, o que eram ou para onde iam, ou os lugares por onde não queriam passar. Um dia, quando o povo reflectido já quase estava louco de tanto se procurar, chegou à cidade um velho mendigo andrajoso e cansado, carregado de pó, suor e fome. Porque era cego não se viu nem viu ninguém mas, com a mão, foi procurando os caminhos descritos pelas paredes das casas. Primeiro espantadas, depois menos receosas, uma a uma as pessoas da cidade foram estendendo a mão e descobrindo o tacto para chegar às ruas certas há tanto tempo perdidas. Foi o cego que lhes ensinou de novo quem eram e a cidade que tinham e os sítios por onde andavam. Não admira por isso que, apenas três dias depois, o rei tenha sido deposto, os espelhos quebrados, e o velho mendigo cego, embora cego, proclamado rei.

11 dezembro 2005

Kara-Ob

Três deuses ainda meninos brincavam felizes no jardim do Og quando Ka, com um sopro mais forte, derrubou sem querer a acácia que Doru plantara há trinta gerações de deuses. Do divino palácio saiu a correr Insuih, o enorme deus da fúria, trazendo em si todo o contentamento do mundo por poder punir alguém. Reunidos em conselho, os deuses mais velhos chegaram a acordo e decretaram o castigo: que Ka nunca mais brinque com os seus amigos; que Ka viva sozinho enquanto não aprender a dominar os poderes. E o castigo foi proclamado. Mas Ka, Ob e Ra, os três deuses ainda meninos, não queriam ser separados nem deixar de ser meninos. Pela calada da noite, quando os grandes deuses mais velhos se entretinham em festa, partiram juntos para o sítio mágico de lugar nenhum, e aí, em segredo, transformaram-se naquilo que continuam a ser: Ka, o vento; Ra, a água e Ob, a grande montanha que chega ao céu. Assim nasceu Kara-Ob, a terra onde três deuses ainda meninos continuam a brincar.

09 dezembro 2005

Vida?

Ao peso da vida já ela andava habituada e, não fossem as meia dúzia de tostões estrangeiros que lhe chegavam de mesada, as coisas seriam ainda piores.
A fábrica de confecções estava a fechar, os putos na escola e ela a tentar fazer render o tempo, a parca mesada e as virtudes.
A noite chegada e lá ia Glória andar mais um bocado, não para derreter gorduras como agora se faz, mas para as fazer leite e pão para os seus miúdos.
Era assim todas as noites, salvo aquelas em que, por obrigação da Natureza era obrigada a um curto período de descanso ou nas alturas em que Custódio vinha a casa.
Custódio nunca poderia saber de nada. Era ponto assente.
Ele não poderia sequer imaginar destas suas actividades, horas extras de trabalho. Custódio andaria ainda convencido que o seu trabalho lá por fora, vivendo num contentor e afogando a saudade em bagaços, era realmente suficiente para as duas bocas que não cessavam de pedir, para os livros da escola, para a casa que tinha começado a construir com as suas próprias mãos e que ostentava agora uma placa de betão de ferros apontados ao céu, como que a rasgá-los – como por vezes Glória se sentia, rasgada por dentro.
Era para fora que ela ia, para as bandas da Serra.
Foi por aí que conheceu o Sr. Matos, cliente habitual que, após alguns encontros no meio do pinhal, resolveu apaixonar-se por ela e tentar tirá-la da vida. Começou com prendas que ela guardava num terreno, enterradas, não fosse Custódio alguma vez indagá-la acerca do assunto, mas rapidamente a coisa tomou outras proporções: das prendas passou às “perseguições”, das perseguições chegou ao cúmulo de a esperar à porta de casa.
A vizinhança desconfiava mas permanecia calada.
Um dia, chegada à Serra, entrou na mata para pousar as suas coisas e deu um grito de terror. O Sr. Matos jazia no meio das silvas com a cabeça aberta e a mioleira espalhada pelo chão.
Fugiu com a rapidez que as suas pernas, já desfeiteadas, lhe permitiam.
Correu, correu muito até chegar a casa, esbaforida. Ao abrir a porta, o seu filho mais novo veio a correr ao seu encontro, saltando-lhe ao colo e gritando de alegria: “Mãe!, Mãe!, o Pai está em casa! Veio de surpresa!”.
Glória ficou estarrecida e, recompondo-se, olhou o marido nos olhos e, sinceramente, abraçou-se a ele, beijando-o entre lágrimas.
“Fizeste boa viagem?”, perguntou ela.
“Estás cansada?”, perguntou ele. “Não devias trabalhar tanto”, acrescentou. “Não tens necessidade”.
Afastou-se.
Glória sentiu um calafrio e ficou a pensar que algo tinha mudado na sua vida e na de Custódio.
Custódio nunca mais lhe tocou durante o resto das suas vidas.

Ao fundo do quintal, entre a sucata que por lá andava, havia uma sachola suja de sangue.

A verdadeira história do soldadinho de chumbo

Era uma vez um soldadinho de chumbo que morava com outros soldadinhos de chumbo numa caixa de brinquedos. Era um soldadinho muito valente, porque na verdade não era feito de chumbo mas sim de porcelana, e por isso é que não tinha um braço. O braço do soldadinho de chumbo tinha-se partido na batalha da produção, e por lá ficou perdido até que um menino que andava a brincar o encontrou e disse “olha o braço dum soldadinho” e depois atirou fora o braço do soldadinho, e com esta brincadeira partiu o vidro da janela da cozinha da minha vizinha. A minha vizinha é um bocado cega e por isso disse “ de quem é este braço de ferro?” e foi assim que nasceu o jogo do braço de ferro. Sofreu algumas evoluções ao longo do tempo, claro, mas foi assim que nasceu: pegava-se num braço de porcelana e atirava-se à janela da cozinha da vizinha. Se ela dissesse “olha um braço de ferro” ganhava-se um ponto, se ela não dissesse nada não se ganhava nada. Se ela dissesse aos pais ganhava-se uma tareia. Era muito giro. Bem. Então o soldadinho de chumbo morava naquela caixinha. Mas não gostava da casa. Um dia pensou “preciso de me distrair” e saiu da caixinha e viu outra caixinha e foi lá. Logo por sorte era a caixinha de circo. Nesse circo havia uma bailarina muito bonita, e o resto é tudo igual. Agora outra.

A verdadeira história da cigarra e da formiga - continuação

A cigarra e a formiga já não estão na toca do urso branco, por isso não sei o que é que se passou. Terá vindo o carteiro? Terá a formiga conseguido enganar o carteiro? Terá a cigarra casado com o carteiro? É impossível saber, embora uma fonte quase anónima nos tenha confidencialmente revelado que a cigarra foi vista na boca do carteiro quando este foi entregar uma carta registada à casa nas nuvens dum pombo onde mora um menino muito lindo com meio mindinho na mão esquerda e óculos de graduação terrífica que mandou a sombra embora. Enquanto não se confirma a versão actual vou contar outra história muito gira até porque ontem me baldei e agora estou com pressa.

07 dezembro 2005

A verdadeira história da pequena sereia

Era uma vez uma princesa que vivia num castelo encantado com os pais. Os pais eram o rei e a cozinheira, mas a rainha não sabia. Um dia a princesa foi passear para a beira mar e caiu à água. Ficou muito aflita, claro, porque a água do mar estraga os vestidos. Estava a princesa muito preocupada com estas questões quando apareceu a pequena sereia e disse “olá quem és tu?”, e a princesa respondeu “olha sou a princesa do castelo encantado” e a sereia disse “eu sou a pequena sereia” e a princesa disse “olá” e ficaram amigas. Estavam elas ainda a conversar quando ouviram um grande barulho. Viraram-se e o que é que viram? Viraram-se e viram um belo homem. O belo homem andava a passear à beira mar quando caiu à água e foi por isso que elas ouviram barulho e se viraram e o viram. Bem. O belo homem apaixonou-se logo pela pequena sereia, por isso foi ao pé dela e disse “eu tarzan tu jane”. Não sabia dizer pequena sereia, mas não faz mal porque a pequena sereia chamava-se mesmo jane. A pequena sereia chamava-se mesmo jane marie de la conche de la mer, mas como tinha um nome muito grande toda a gente a tratava por pequena sereia. E como se pode ver o belo homem tinha poderes. A pequena sereia também se apaixonou logo pelo tarzan, por isso fugiu com ele para a selva. A princesa ficou muito triste por ter perdido uma amiga e voltou para o castelo. A mãe e o pai e a avó da pequena sereia ficaram tão envergonhados com esta história que inventaram a outra.

06 dezembro 2005

A verdadeira história da cigarra e da formiga

Era uma vez uma cigarra que vivia com uma formiga na cova do urso branco. Tinham-se conhecido há muitos anos no baile do castelo do príncipe que casou com a gata borralheira, porque a cigarra, que era costureira, é que tinha feito os fatos do príncipe e do rei e da rainha. A formiga tinha lá ido cantar ópera. Foi assim que se conheceram e decidiram morar juntas, e durante um certo tempo tudo correu bem porque a cigarra fazia os fatos para a formiga usar nos espectáculos e a formiga cantava para adormecer a cigarra. Um dia, estava a cigarra sozinha em casa, ouviu tocar à porta: Trim Trim e ficou muito espantada. Quem é?, perguntou ela, e ouviu “É o carteiro”. O carteiro toca sempre duas vezes. A cigarra foi abrir e quando viu o carteiro ficou logo apaixonada. O carteiro nem por isso. Entregou a carta (era para a formiga) e foi-se embora. A cigarra, coitadinha, ficou muito triste e mal a formiga chegou entregou-lhe logo a carta. Não. Contou-lhe logo que se tinha apaixonado, é isso. Esta parte é um bocado confusa. Não se sabe muito bem o que é que a cigarra fez primeiro, mas pronto, a verdade é que disse à formiga que se tinha apaixonado pelo carteiro e que não sabia o que é que havia de fazer para o carteiro se interessar por ela. “Apaixonei-me pelo carteiro e não sei o que é que hei-de fazer para ele reparar em mim” disse a cigarra à formiga. A formiga sentou-se em cima da cama a meditar. Dois dias depois disse “Cigarra, já sei, tive uma ideia.” “qual é?” perguntou a cigarra “visto-me de cigarra e quando o carteiro vier canto para ele como se fosses tu. Está bem disse a cigarra e assim fizeram. A cigarra fez um fato de cigarra, a formiga vestiu-o e sentaram-se à espera do carteiro. Entretanto o carteiro estava a demorar muito, por isso vou contar outra história:

Aviso desnecessário

A pedido muito muito subtil de muitos muitos dois leitores vou dar início à publicação dos tais contos que um dia escrevi. E para não cansar as vistas fracas que por aqui abundam, conto publicar um conto (viram?!) a cada dois ou três dias. Ou não, ainda não sei, depende. Se acharem isso muito mau posso passar a publicar só meio conto por dia. Ou desenhos de crochet dia sim dia não. Também sei ler bolas de cristal e beber chá e tenho uma máquina nova de lavar roupa. E de certeza que vou intercalar esta coisa com outros, porque não gosto de me repetir. Seguem-se, pois (e atenção que isto é para pentalingues!):

de tru

de stóris

de tru afe stóris

tru lâve stóris

ór

tru stóris afe lâve

Carta ao Pai Natal (especial para o Lé Laré sem acento)

Pai Natal

Esta sou a Luisinha que mora no prédio cor de rosa muito alto que faz esquina com duas ruas. Não te consegui escrever mais cedo porque a mãe obrigou-me a lavar as paredes todas do meu quarto que tinham histórias e desenhos que eu fiz. Foi muito difícil mas já está. Tenho um problema porque na minha casa não há chaminé. Disse a senhora Alice que cá vem às terças feiras e por isso não podes entrar por lá. Mas já falei com a Ritinha que mora ali mesmo ao lado no prédio todo branco com as janelas cinzentas e tem chaminé. Ela disse que podes entrar por a chaminé da casa dela e depois sais outra vez até ao terraço e depois saltas pró terraço do meu prédio e depois abres a porta e desces por a escada e entras por a porta da cozinha que dá pra lá. Eu deixo a porta só encostada. Agora as prendas é assim. Eu queria uma ratoeira mas cá em casa nem sequer há ratos por isso se calhar é melhor outra coisa. Vou-te pedir uns binóculos. E também quero umas renas como as que tu tens mas não tragas o trenó porque o meu quarto é pequeno. As renas pode ser só uma. O canário que me deste o ano passado foi-se embora e por isso não quero mais. A mãe diz que foi porque eu deixei a janela aberta mas eu acho que ele foi porque quis porque havia mais passarinhos lá fora e depois foram todos fazer músicas juntos. Os canários não gostam de estar em casa das pessoas já devias saber muito bem. Também quero um espantalho mas não é para assustar os passarinhos. Pode ser aquele que está no caminho quando a gente vai para a praia e que tem um chapéu e palha a sair no sítio das mãos e está-se a rir. Mas eu sei que ele está triste porque não canta. Não quero mais bonecas nem nada dessas coisas. O resto pode ser tudo surpresa. Agora outra coisa. O Custódio da minha escola disse que o ano passado só lhe deste uma camisola e ainda por cima azul e ele gosta mais de verde ou castanho. O Custódio da minha escola é aquele menino que sabe fazer aviões de papel e jogar ao pião e tem olhos castanhos e cabelo castanho também. A professora não gosta dele e nem os outros meninos só eu e a Ritinha mais o Jorge é que gostamos. Por isso este ano ele quer um cavalo e um barco e uma bicicleta para ir prá escola. O cavalo pode ser castanho porque ele sabe que não tens cavalos verdes mas se tiveres ainda é melhor. Olha e se puderes traz-me a ratoeira e os ratos. Se faz favor obrigada.

02 dezembro 2005

Pedras do Caminho

Lá à frente a escuridão palpável barrava o caminho e não havia galho de árvore que mexesse, não havia pio de ave ou arfar de bicho que atestassem vida. Era o breu profundo que imperava como uma metáfora de morte próxima a encharcar os ossos já cansados do viajante que, para chegar ao seu destino, teria que cruzar aquela parte da floresta.
Pousou o saco com comida suficiente para essa noite e um cobertor outrora quente a seus pés e olhou em volta, tentando avaliar o caminho. Sabia, de relatos que lhe tinham chegado aos ouvidos em tabernas e hospitais do caminho, que muitos dos viandantes que ousavam o caminho da floresta não foram mais vistos, pelo menos na sua forma original pois, segundo alguns contavam, eram feitos cativos do emaranhado de silvas e arvoredo sob a forme de pedras incógnitas que nem um traço de pessoa conservavam e que, em noites escuras, soltavam lamentos sob a forma de uivos terríveis, tão terríveis que quem os ouvisse poderia focar louco com tamanho desespero.
Ficou ali por um momento até decidir avançar. Não tinha muito a perder. Tinha nada e nada era mais ou menos a sua vida. De posses, para além do bornal que transportava, tinha apenas um relógio que pertencera aos varões da família que não deveria deixar a ninguém pois a sua idade, já alguma, não era a própria de quem quer constituir família.
Amigos não tinha e paixões muito menos. Era mais como um Judeu Errante que andava por aí até que a Senhora o levasse, se algum dia o levasse, que até agora essa Irmã Morte não lhe tinha ainda dado sinais de vida.
Penetrou na vegetação, avançando a custo por entre silvas e altos arbustos, tropeçando ocasionalmente numa ou outra raiz centenária que lhe dava sinal de existência, acautelando a marcha, olhando sempre em volta. Nada. Nem vivalma, nem sinal algum, ruído, apenas o dos seus passos na folhagem. Lá à frente, uma clareira. Uma fonte iluminada pelo luar raro estava mesmo ali ao centro, elevada num patamar de mármore jorrando o que lhe parecia ser água. Aproximou-se tirando o cantil que levava a tiracolo e, lá chegado, tratou de o encher.
Sentado e com o cobertor pelos ombros, tirou alguma comida, queijo e pão já duro de alguns dias, que mastigou com calma, lentamente a tomar-lhe o gosto, e bebeu. Não era água, ou pelo menos seria uma água bastante especial pois o seu sabor estava para ali entre o mel e o mais saboroso dos vinhos e, embora incolor e inodoro era completamente satisfatório. Bebeu mais um pouco, mais um pouco e sempre mais um pouco até que, embalado já por estranhos cânticos e luzes que lhe dançavam o espírito, se deixou adormecer.
Sonhou. Muito. Castelos, lindas mulheres de vestidos debruados a ouro em decotes lascivos, taças em ouro e diamantes cheias dos mais preciosos néctares, crianças que o rodeavam e lhe prestavam atenções desconhecidas, a lareira crepitante, a comida na mesa, tudo em surround e a cores, cheiros e sabores incluídos, um piano que tocava qualquer coisa de Chopin (claro…) e, lá fora, árvores de natal a delimitar os caminhos.
Era festa em qualquer um outro tempo que ele não conhecia. Uma mistura de passado/presente/futuro que não sabia como distinguir mas que lhe agradava. O conforto, finalmente, talvez até o amor, pela forma como aquela mulher o olhava.
O sonho, porém, continuava sempre, com imagens sobre imagens, com cheiros, sabores, em cima de cheiros e sabores, com a felicidade a sobrepor-se à felicidade até chegar a um ritmo impossível de aguentar. Ninguém conseguiria, jamais, ser feliz assim.
Tentou acordar, em vão. Não conseguia.
Reparou, estarrecido, que iria ser incomensuravelmente feliz por toda a eternidade. Talvez o tivesse desejado intimamente, explicou-lhe uma voz que não conseguiu definir, tal como todos os que por ali andavam há anos, há séculos.
Ele disse: mas eu não quero ser feliz. Eu vivo bem na minha miséria diária, no meu caminho molhado de todos os dias. Eu não quero mais nada senão ter as minhas botas rotas e andar, sempre.
Estás enganado, disse-lhe a voz. Bebeste da Fonte do Desejo, é este o líquido mágico que te dá os teus desejos e só existe uma forma de te libertares do sonho: deverás renunciar a tudo o que acreditas ser, deverás negar a tua própria existência, deverás deixar de caminhar solos molhados pela chuva e entregares-te ao esquecimento de ti próprio – ser como o tolo da aldeia que ri desalmado por entre a falta de dentes e o olhar exorbitado às pessoas que saem da igreja, ser como a mulher que pariu o nado morto e não sente absolutamente nada com isso, ser como o general que envia os seus milhares de mancebos para a morte com o risco estatisticamente analisado, ser como o padre que parte o corpo de deus em dois e o molha no vinho sem se aperceber do sabor que ofereça em comunhão, ser como o ministro que condena à morte sem um pestanejo.
Ele olhou pela primeira vez para dentro de si próprio, nunca se tinha visto. Viu uma luz que tremeluzia e que sabia ir apagar-se se deixasse o sonho. Nunca conseguiria ser assim. Infeliz, talvez – indiferente, nunca.
Deixou-se ficar.

Ali, na floresta, em noites escuras, existe agora uma pedra que grita o sofrimento angustiante de ser feliz eternamente.